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“The Future Is Female” e Outras Considerações Sobre Moda e “Ativismo”

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  • Marina Colerato
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Conforme as semanas de moda vão se desenrolando, podemos esperar muitas declarações políticas (ou pelo menos pseudo-políticas) por vir inclusive acerca do tema feminismo. Essa temporada começou com Raf Simons e continuou com Prabal Gurung usando uma camiseta com a frase "This is What a Feminist Looks Like" (em tradução livre, "assim é como uma feminista se parece") e Bella Hadid no desfile do estilista carregando uma camiseta com o slogan"The Future Is Female" (em tradução livre, "o futuro é feminino").

 Camisetas com slogans feministas na passarela não são mais novidade pra moda. A febre começou há algumas temporadas, talvez com aquele desfile “feminista” da Chanel e continuou com Dior na temporada passada. De lá para cá, essa “tendência” só aumentou – desde 2015, em particular, peças com a frase“The Future Is Female” dominaram o Instagram e não coincidentemente isso aconteceu logo após Cara Delevingne e sua namorada, Annie Clark, serem clicadas com suéteres gêmeos com a frase.

Apesar do fato de (ou, talvez, exatamente porque), como colocou Jia Tolentino, esse tipo de febre se transformar facilmente em uma “co-optação vazia de aparências radicais – um alinhamento superficial, baseado no mercado, mais provável por fazer uma mulher se sentir bem e justa do que levá-la à ação política que o feminismo está destinado a estimular”, a história por trás do “The Future Is Female” vale à pena ser (re)contada.

Como apontou o The New York Times, o slogan vem de um movimento feminista separatista lésbico dos anos 70. A primeira camiseta com os dizeres “The Future Is Female” foi criada pela Labyris Books, a primeira livraria de mulheres na cidade de Nova York. A fotógrafa Liza Cowan tirou uma foto de Alix Dobkin, sua namorada na época, vestindo a camiseta em 1975. Conforme explica Cowan ao jornal: “Eu estava apenas começando a trabalhar como fotógrafa, e perguntei a cinco amigas se eu poderia fazer uma história de antes e depois sobre como o olhar de uma mulher pode mudar ao longo de sua vida à medida que ela amadurece”.

A foto original de Cowan foi publicada no perfil do Instagram @h_e_r_s_t_o_r_y, dedicado a imagens lésbicas históricas. Assim que a designer Rachel Berks, de Los Angeles, viu a foto, ela produziu 25 camisetas com a frase que se esgotaram em dois dias. Berks fez uma segunda tiragem e doou 25% dos lucros para a organização Planned Parenthood. Depois ela fez os suéteres e os colocou à venda na loja de presentes da “casa assombrada feminista lésbica” KillJoy’s Kastle. Foi lá que Annie Clark viu o suéter e decidiu comprar dois. Dai em diante, vocês já sabem o que aconteceu.

“Ele [o slogan] tomou vida própria,” disse Liza Cowan. “Eu não sei o que fazer com isso. Mas eu acho que o slogan é ótimo, eu amo que as mulheres o estão usando. É uma espécie de chamada às armas, e é uma declaração de fato”.

Alix Dobkin fotografada por Liza Cowan em 1975, com a camiseta original, e em 2015, com a camiseta de Berks

 É muito melhor saber que o slogan não foi criado por uma corporação tentando vender empoderamento feminino, mas sim por um movimento feminista da década de 70. Mas a falta de conhecimento da história por trás do slogan pode nos fazer pensar que uma camiseta tem o fim em si mesmo, quando, na verdade, ela faz (e sempre deve fazer) parte de um conjunto de ações sendo tomadas para que as questões das mulheres avancem nos campos sociais e políticos. Ao entender melhor a história dessa camiseta em específico, fica fácil entender porque Berks, Delevingne e Clark a adotaram para si. Mas o ponto principal da questão – visibilidade e respeito lésbico – pode se perder no meio da febre.

E, em se tratando de moda, precisamos não só ser cautelosas como também pensar duas vezes sobre para onde nossas celebrações e questões importantes estão sendo levadas. A moda é famosa por transformar questões sociais em tendências de estilo bastante passageiras, ao mesmo tempo que torna questões amargas em palatáveis ao se desfazer de toda sua carga política sem tomar qualquer tipo de responsabilidade de mudança para si. Não precisamos pensar muito para lembrar de exemplos recentes de como a moda tem falhado nesse campo ao continuamente explorar pessoas, majoritariamente mulheres, em países em desenvolvimento, o meio-ambiente e os animais para lucrar, lucrar e lucrar. Além de estimular a competição feminina e o acúmulo de riqueza.

É por isso que a união de moda e política sempre me traz questionamentos. Moda tem uma capacidade inimaginável de transformação da sociedade por meio da criatividade, mas ela está há muito tempo a serviço do capitalismo para mudar qualquer coisa de cima para baixo agora, além de ser uma das principais formas de co-optação vazia de movimentos políticos e transformação de discursos em commodities.

A camiseta de 550 euros da Dior “devemos todas ser feministas” é um ótimo exemplo de como a moda transforma discurso em commodities sem realmente promover nenhuma mudança

 Eu não sei vocês, mas eu definitivamente não quero o futuro feminino que a moda está nos vendendo: onde algumas mulheres carregando peles de animais mortos sobre o corpo seja sinônimo de sucesso, menos ainda onde camisetas com slogans aparentemente positivos custam 550 euros e são produzidas sob circunstâncias de vulnerabilidade por outras mulheres. Estou ainda menos interessada em um futuro onde a moda continue centralizada e os homens continuem tendo mais espaço para fazer suas declarações enquanto as mulheres aparecem, em forma de modelos, como seus acessórios.

Do lado de cá, acredito que a mudança virá da base e de uma descentralização do poder, e por mais que grandes designers estejam tentando fazer o seu melhor, eles ainda estão a serviço de marcas controladas por grandes grupos cujo maior propósito é continuar acumulando dinheiro. Como Angela Davis e Nancy Fraser colocaram em sua carta convocatória para a greve mundial das mulheres do dia 08 de março, está na hora de “construir […] um feminismo para os 99% […] um feminismo solidário com as trabalhadoras, suas famílias e aliados em todo o mundo” – e não me parece que a grande indústria da moda está realmente disposta a construir nada além de um belo e vendável discurso.

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