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A Desigualdade de Gênero Que Parece Passar Despercebida na Moda

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  • Marina Colerato
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Time Modefica

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A equidade de gênero no mercado de trabalho virou um debate constante. Os números revelam que mulheres são maioria no ensino superior e buscam maior qualificação profissional, mas ainda assim só 11% dos cargos de tomadas de decisão nas 500 maiores empresas do país são ocupados por mulheres. Na moda não é diferente, das 50 maiores marcas de moda, apenas 14% são lideradas por mulheres e não há nenhuma mulher entre os 10 CEOs mais bem pagos da indústria.

Quando olhamos para o cenário de maneira desatenta, essa percepção pode nos faltar. Afinal, a moda é uma indústria que vende massivamente para as mulheres e que depende totalmente da mão de obra feminina nas linhas de produção. No Brasil, 75% da mão de obra da indústria são mulheres. No mundo, esse montante chega a 85%1A International Labor Organization estima 68% de mão de obra feminina na indústria da moda como um todo, porém afirma que os dados oficiais sobre mulheres na indústria são limitados e esse número precisa ser lido com cautela, principalmente porque mistura os setores de confecção, têxtil e indústria coureira. Fontes do filme True Cost afirmam que 85% da mão de obra na confecção é feminina (2014) – ILO .

A presença feminina também é quase total nos cursos da área. Nas universidades e escolas criativas do Brasil, basta entrar numa sala de aula de qualquer curso de moda para notar que quase todo o corpo estudantil é composto por mulheres. A Fashion Institute Technology, uma das escolas mais conceituadas de Nova Iorque, afirmou que 85% de seus estudantes em 2014 eram do sexo feminino.

Entretanto, além de faltar mulheres nas posições de liderança e CEOs, nem 25% dos altos cargos das maiores empresas de moda são femininos. Ou seja, as mulheres estão entrando em maioria díspar no mercado de moda, mas elas não chegam no topo e estão longe de ditar as regras.

A realidade das semanas de moda

Recentemente, o Business Of Fashion fez um levantamento das semanas de moda de Nova Iorque, Londres, Milão e Paris para analisar a quantidade de mulheres versus a quantidade de homens à frente das marcas. A conclusão: dos 371 designers por trás das 313 marcas levantadas pelo BoF durante as quatro semanas de moda, apenas 40,2% eram mulheres.

Nova Iorque e Londres, que contam com marcas mais novas e jovens, têm a maior porcentagem de mulheres à frente de marcas com 47,3% e 40,5% respectivamente. Nas semanas de moda mais tradicionais e que contam com mais marcas de prestígio, a diversidade é pior com 37% de diretoras criativas em Paris e apenas 31% em Milão.

Não à toa, a estreia de Maria Grazia Chiuri como diretora criativa da Dior nessa temporada causou grande euforia. A marca nunca tinha tido uma diretora criativa mulher e, antes dela, apenas 3 das 15 marcas de moda do grupo LVMH eram comandadas por mulheres: Phoebe Philo na Céline, Carol Lim na Kenzo e Florence Torrens na Thomas Pink. No grupo Kering, apenas Stella McCartney à frente de sua marca homônima e Sarah Burton à frente da Alexander McQueen estão em posições de liderança criativa.

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Maria Grazia Chiuri faz história ao ser a primeira mulher à frente da marca francesa Christian Dior // Reprodução

Nas passarelas brasileiras

No Brasil, a São Paulo Fashion Week, considerada a maior semana de moda da América Latina conta com 28 estilistas à frente de 25 marcas. Na edição que começou domingo, 23/10, são 13 mulheres ocupando o posto de diretoras criativas não chegando nem na metade, com 46,42%.

Já quando o assunto são novos talentos, diferente do que acontece em Nova Iorque e Londres, o cenário é ainda pior para as mulheres por aqui. Na 39ª edição da Casa de Criadores, evento que acontece há 20 anos em São Paulo e dá espaço para designers menos conhecidos, dos 19 estilistas à frente das marcas apenas 5 eram mulheres, representando um total de 26,3%.

Outro evento importante do calendário nacional que, apesar de ser mais um salão de negócios do que uma semana de moda, conta também com desfiles, a 19ª edição do Minas Trend teve 8 desfiles no line-up somando 10 estilistas dos quais 6 são mulheres. O Minas Trend tem a maior porcentagem de mulheres à frente dos desfiles, com 60% de mulheres diretoras criativas. Nenhuma mulher é responsável criativa e/ou idealizadora desses eventos que marcam o calendário de moda nacional. Paulo Borges está à frente do SPFW, André Hidalgo da Casa de Criadores e Olavo Machado Junior, presidente da FIEMG, à frente do Minas Trend.

Na área de negócios, quem ocupa os cargos das organizações brasileiras e associações ligadas ao desenvolvimento da moda nacional como Abit (Associação Brasileira da Indústria Têxtil e de Confecção), Abest (Associação Brasileira de Estilistas) e ABVTEX (Associação Brasileira do Varejo Têxtil). À frente da Abit temos dois homens: Rafael Cervone e Fernando Pimentel, à frente da ABEST temos Roberto Davidowicz, e à frente da ABVTEX temos Edmundo Lima.

Além do recorte de gênero, não podemos deixar de lado o recorte de raça e destacar a ausência de mulheres negras à frente das marcas brasileiras que compõe o calendário de moda. Enquanto alguns estilistas negros pontuam de maneira tímida os desfiles brasileiros, não há nenhuma mulher como estilista ou diretora criativa dessas marcas. Fora do Brasil não é diferente. O New York Times trouxe o assunto à tona em 2015 revelando que apenas 4 dos 260 desfiles de maior alcance na semana de moda de Nova York contavam com estilistas negros. Para além dos desfiles, toda a indústria da moda sofre com uma enorme falta de profissionais negros em todos os nichos de atuação.

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A mineira Gloria Coelho tem 40 anos de história na moda brasileira e permanece à frente de sua marca homônima // Reprodução

Se tantas mulheres no mercado, porque tão poucas em destaque?

Mas se somos tantas a mais, se somos nós que fazemos, consumimos e estudamos essa indústria, por que não somamos nem metade à frente dos desfiles mais importantes e nem 1/4 em posições de liderança nas maiores empresas do segmento? Temos algumas respostas para essas perguntas, mas basicamente a moda, como todas as outras indústrias, reproduz e mantém a desigualdade de gênero.

No artigo The Fashion Industry and Gender Inequality, Oluremi Akin-Olugbade lembra que “idêntico a outras indústrias, a indústria da moda requer recursos de capital em forma de dinheiro e mão de obra para manter suas casas de moda.” Essa necessidade de recursos tende a reproduzir a desigualdade de gênero na base da indústria. “Casas de moda estão constantemente à procura de investidores ricos com os recursos de capital necessários para lançar e sustentar suas corporações […] Esses recursos de capital estão primariamente à disposição do grupo majoritário: os homens.” A distribuição desigual de recursos mantém o poder masculino intocado.

A distribuição desigual de recursos de capital entre homens e mulheres continua a colocar mais homens nas posições de autoridade.

O clube do bolinha, porém, não se limita às posições de autoridade e liderança, ele adentra o universo criativo também. Homens tendem a se cercar de homens e esse é um dos motivos pelos quais frequentemente são os homens os nomeados pelos CEOs dos grandes grupos de moda a cargos de direção criativa. Em um artigo de 2005 no New York Times, a disparidade entre homens, principalmente homens gays, e mulheres à frente das marcas de moda internacionais mais famosas já era questionada. Um dos pontos levantados era exatamente como os designers mais famosos tendem apadrinhar designers homens e raramente uma mulher. Em contraponto disso, muitas mulheres se sentem ameaçadas a dar cargos para mulheres ou até mesmo apadrinhá-las2A rivalidade feminina pode ser entendida pelas lentes da psicanálise, da sociologia e da antropologia. Para entender mais, indico o texto Competição Feminina É Criação Da Sociedade (2016) – O Tempo .

No artigo de Akin-Olugbade, a homofilia também aparece como uma das responsáveis por perpetuar as desigualdades. “A homofilia, comumente observada em configurações de rede por sociólogos, é um conceito comportamental em que uma pessoa tende a associar-se a outras pessoas semelhantes a si mesmas.” Essa tendência inconsciente de associar-se a pessoas que são “socialmente e culturalmente semelhantes” perpetua o desequilíbrio na indústria da moda.

Entretanto, além das estruturas de poder, há também outras questões sociais que dificultam a chegada das mulheres em postos de direção criativa de grandes marcas e em cargos de liderança. Um que tange ambas as questões é o peso da responsabilidade pelos filhos, pela casa e pela família que é desigualmente carregado pela mulher.

“Usualmente um diretor criativo tem em torno de 30 a 45 anos. É quando, tradicionalmente, as mulheres estão casando e talvez começando uma família – e isso se torna completamente proibitivo se você tem um desses trabalhos esgotantes”, disse Moira Benigson, da empresa de pesquisa The MBS Group à matéria do BoF. Porém, a verdade é que muitas designers provam na prática que, pode ser difícil, mas é possível equilibrar a carreira de designer de moda e família, como Vera Wang, Diane Von Furstenberg, Stella McCartney, Donna Karan e Phoebe Philo. Além do mais, essa questão não se aplicaria à realidade das jovens designers de 20 e poucos anos, e consequentemente não explicaria a ausência delas nas passarelas que revelam talentos.

Os homens são mais representados como artísticos e originais, e as mulheres são representadas como sendo menos artisticamente orientadas.

Um fator que pode ser bastante impactante na carreira de mulheres estilistas vem, na verdade, da percepção de que homens são melhores designers que mulheres. Uma explicação elucidativa desse fato é da Dra. Allyson Stokes, professora assistente de Conhecimento Integrado, da Universidade de Waterloo:

“Como a maioria dos artistas, designers de moda são valorizados por sua originalidade, autonomia, criatividade e por serem artisticamente impulsionados, em vez de economicamente guiados. Estas características estão intimamente ligadas a ideias como força, independência e domínio – que têm sido tipicamente mais associadas com homens do que com mulheres. Como resultado, muitas vezes, nos meios de comunicação, “os homens [são] mais representados como artísticos e originais, e as mulheres são representadas como sendo menos artisticamente orientadas… [ou] por terem um toque feminino. Eu não acho que as pessoas que escrevem para a Vogue são… necessariamente conscientes de como esses critérios como a autonomia, a arte, a originalidade e autenticidade são generificados, mas elas acabam caindo nesse conceitos de gênero a fim de acessar os designs”.

Sendo assim, na indústria da moda, não só as mulheres devem enfrentar a percepção de que homens são melhores líderes e têm características que os colocam à frente das mulheres em se tratando de capacidade para cargos de liderança, e o fato de que a responsabilidade com a família sobrecai desigulamente em suas costas, elas precisam também enfrentar padrões generificados que impactam, mesmo que inconscientemente, na avaliação da criatividade e da qualidade de seu trabalho artístico.

Como podemos forçar a mudança desse cenário?

Apesar das estruturas de poder serem difíceis de quebrar e as questões sociais se apresentem igualmente desafiadoras, há algumas possibilidades de ação para as mulheres da moda que buscam trabalhar com mais consciência e entendem a importância da equidade de gênero na indústria.

No âmbito pessoal, devemos continuar desafiando a indústria e nos posicionando como mulheres capazes. Pedir aumento de salário e se candidatar em oportunidades de cargos mais altos são algumas das coisas que podemos fazer nós mesmas dentro das empresas. “As mulheres devem ser treinadas e se sentirem confiantes para pedir mais dinheiro”, diz Randy Melzi, diretora de Programas de Políticas Públicas e Relações Corporativas da Americas Society and Council of the Americas – organização dedicada à educação, ao debate e ao diálogo nas Américas ao El País.

As mulheres devem ser treinadas e se sentirem confiantes para pedir mais dinheiro.

Entender, encarar e deixar para trás a síndrome de impostora pode ser um passo bastante importante para muitas mulheres capazes que não avançam na carreira por se sentirem incapazes. Em entrevista a uma matéria da Marie Claire sobre o assunto, a coach Renata Rocha, criadora do YOUniversality, empresa que promove cursos de autoconhecimento e orientação vocacional aponta um dos motivos pelos quais mulheres são mais sucetíveis a se sentirem impostoras na carreira: “Na infância, as meninas são elogiadas pela beleza, enquanto os meninos, por serem espertos ou corajosos. Não é à toa que nunca temos certeza da nossa competência.”

No quesito que tange o âmbito social da responsabilidade pela casa e pelos filhos, uma pesquisa em Harvard revelou que os maridos pesam mais na carreira da mulher do que cuidar da casa e das crianças. Um dos motivos que explicaria esse fator é que para 70% dos entrevistados na pesquisa, a carreira deles teria mais importância do que a carreira da esposa. Então é importante estar atenta ao quanto sua carreira é deixada em segundo plano para a que de seu marido prospere.

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Por meio da #mulheresnamoda e #mulheresnamodaconsciente, o Modefica indica marcas e iniciativas da área criadas e comandadas por mulheres // Instagram @Modefica

Criar nosso próprio espaço, ou seja, nossa própria empresa é também uma das maneiras de estar à frente da própria marca. É o que notamos tanto ao olharmos para estilistas consagradas como Vera Wang, Vivienne Westwood, Stella McCartney e Donna Karan, quanto para empresas menores, como as que desfilem nas semanas de moda do Brasil, ou que não estão ali, mas estão ganhando destaque por meio da Internet e de maneira independente.

Quando tivermos o poder de contratação e promoção nas mãos, é importante entender as desigualdades no mercado e como elas são perpetuadas por percepções de gênero que não são verdadeiras, além de achar soluções internas para as questões sociais. Ser uma pessoa líder atenta às questões de gênero e raciais é fundamental para construir uma indústria diversificada e justa.

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