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O Mercado de Roupas de Segunda Mão no Brasil em Perspectiva

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  • Juliana Aguilera
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Victória Lobo

9 min. tempo de leitura

O aumento do consumo de roupas de segunda mão é uma questão de consciência? É sobre comprar mais por menos? Ou será ambas as coisas? Essas não são perguntas com respostas fáceis, porém necessárias para nos ajudar a entender, e analisar, com mais consistência, a realidade do Brasil quando o debate é roupa usada e moda sustentável.

O mercado de segunda mão, ou seja, de produtos usados, tem movimentado a economia, acompanhando uma curva crescente. Segundo o mais recente relatório de inteligência do Sebrae (Serviço Brasileiro de Apoio às Micro e Pequenas Empresas) sobre o mercado de segunda mão, divulgado em fevereiro deste ano, 10,8 mil micro e pequenas empresas comercializavam produtos usados em 2013. No ano de 2015, esse número aumentou para 13,2 mil negócios, o que representa um crescimento de 22,2%.

Em se tratando de moda, o número de brechós teve um crescimento de 210% de 2010 a 2015. No mundo virtual, sites como Enjoei, Peguei Bode e Repassa, além dos milhares de brechós que só existem no Instagram, são responsáveis por abocanhar uma parcela importante desse boom do usado quando falamos de moda. 

Tanto no Brasil, quanto no mundo, relatórios sobre o mercado de roupas de segunda mão são rápidos em afirmar que o aumento dos números está relacionado com a demanda da sociedade por sustentabilidade. De fato, o termo “consumo consciente” tem caído no gosto popular, estampando manchetes, campanhas publicitárias e abrindo discussões sobre como comprar e lucrar gerando o menor impacto possível no meio ambiente.

Uma rápida pesquisa no Google Trends revela que a pesquisa por “consumo consciente” aumentou 400% no período de 2010 a 2015. Com cada vez mais consumidores adeptos do “comprar sem peso na consciência”, o mercado de segunda mão em suas várias formas aparece como alternativa. Relatórios de tendências, há alguns anos, já vêm falando sobre lowsumerism e a mudança no comportamento de consumo, principalmente das gerações Y e Z. 

Porém, uma análise do cenário econômico no Brasil –  e no mundo – se faz necessária para contextualizar essas informações. Em 2015, o volume de vendas do varejo no acumulado do ano de 2015 recuou 4,3% com tecidos, vestuário e calçados representando uma negativa de -8,7% nesse recuo. No mesmo ano, o PIB (Produto Interno Bruto) sofreu queda de 3,8% e a renda per capita do brasileiro passou de US$ 16,2 mil, em 2014, para US$ 15,7 mil em 2015. Esses são só alguns dos diversos dados responsáveis por sinalizar que o aumento do consumo de roupas de segunda mão coincidem, não só com o aumento da consciência das pessoas, mas também com anos de retração da economia e do varejo.

Preço ou conscienciência?

Para Carolina Delgado, antropóloga e fundadora do Puxadinho, espaço de experimentações antropológicas com experiência em moda e beleza, o fato das pessoas estarem comprando em lugares de segunda mão não é sobre uma mudança de pensamento, mas sim sobre a crise econômica. “As pessoas não sabem quem faz as roupas e não estão muito interessadas em saber, porque essa dinâmica da rede [produtiva] da moda não é acessibilizada, as pessoas não entendem como ela funciona”, afirma ela. Isso significa que, na realidade, a reflexão sobre consumo tem chegado com pouca intensidade, ou é inexistente, entre muitas das pessoas que movimentam o mercado de segunda mão.

A pesquisa “Antes e Depois do Túnel: Narrativas Sobre o Consumo de Roupas de Segunda Mão no Rio de Janeiro”, divulgada na 1ª edição do Fashion Revolution Fórum, em 2018, acompanhou dois grandes eventos de brechó no Rio de Janeiro: o Brecholeiras RJ, realizado no bairro da Madureira, e o Grande Encontro de Brechós, na Zona Sul. Para a pesquisadora, a resposta é simples. “Esteja você em Botafogo, Ipanema ou Madureira, quando alguém acha uma roupa da Farm ou Zara por dois dígitos, é um grande prêmio. As pessoas vão nesses eventos procurando fazer a melhor equação possível entre preço e etiqueta”, revela ela.

Quando alguém acha uma roupa da Farm ou Zara por dois dígitos, é um grande prêmio. As pessoas vão nesses eventos procurando fazer a melhor equação possível entre preço e etiqueta.

Carolina Delgado

Não é arriscado afirmar, então, que o consumo de roupas usadas no Brasil tende a ser, em grande parte, o que sempre foi: um jeito de se virar com o baixo orçamento, cada um a sua forma. “Uma das expositoras das Brecholeiras me falou assim: ‘se eu for com R$ 100 no shopping, eu não compro nada. Agora, com R$ 100 aqui, eu saio com umas cinco sacolas e sobra dinheiro pra ir ao shopping comer’”, relata Carolina. A discussão sobre o por quê alguém necessita de cinco sacolas de roupa não passa pela cabeça das pessoas.

Com experiência de quase três anos no segmento, Luiza Guedes, uma das responsáveis pelo brechó Muambê, percebeu que brechó se tornou antídoto para culpa do consumo excessivo. “Comprar cinco peças usadas, ao invés de cinco itens novos numa fast fashion qualquer, concede a leve impressão de consumo consciente”, explica ela. Ou seja, a pessoa não repensa o consumo, ela simplesmente o transfere.

Quando a roupa é a moeda de troca

Não é difícil perceber a lógica consumista até mesmo onde o consumo acontece sem intermédio de dinheiro. Mari Pelli, do Roupa Livre, talvez tenha sido umas das primeiras pessoas a promover encontros de trocas de roupas abertos, há 5 anos. Uma das missões com o encontro, além de aumentar a vida útil das peças, é incentivar a suficiência. “Tentamos incentivar o olhar de que não importa o número de peças que você trouxe e está levando, importa se essas roupas realmente vão fazer sentido pra você”, explica Mari sobre qual deveria ser a mentalidade das pessoas que participam de eventos de troca de roupas.

Mas a realidade é outra. As experiências com vários eventos, de vários tamanhos, fez Mari perceber que a maior parte do público encara a troca de roupas como uma grande black friday. “Nos encontros maiores que fazemos, eu já vivi muitas tristezas por ver pessoas realmente agindo como se estivessem na black friday. É uma mentalidade de ‘é roupa de graça, eu preciso me beneficiar e eu preciso me dar bem’”, conta ela. É muito comum as pessoas ficarem frustradas por terem levado 10 peças de roupas para a troca e não terem voltado com as mesmas 10 ou mais. Brigas para entrar no espaço primeiro e garantir roupas melhores também são menos raras do que podemos pensar.

É uma mentalidade de ‘é roupa de graça, eu preciso me beneficiar e eu preciso me dar bem’.

Mari Pelli

Para reverter a mentalidade do consumismo e do “se dar bem”, o Roupa Livre criou uma página para as pessoas acessarem antes do encontro. O objetivo é incentivar as pessoas irem aos eventos dispostas a ter atenção plena e não cair nas ciladas do consumismo. Para Mari, não adianta você só mudar a moeda de troca – tirar o dinheiro e colocar a roupa -, mas ter o mesmo comportamento. “Nos encontros de troca dentro da bolha, encontros menores, com 10 pessoas, realmente há um olhar de não-consumismo. Já teve encontro de troca que teve trabalho anterior para falar de autoestima, por exemplo, e a galera nem levou roupa pra casa. O que pra gente é um indicativo de sucesso”, detalha ela.

Já no aplicativo de trocas do Roupa Livre, Mari afirma que a ansiedade é menor, diferente do que acontece nos espaços de troca física, que “são muitas roupas juntas, além de ser algo efêmero, apenas um dia de trocas. As pessoas têm esse sentimento de urgência, de não poder perder a oportunidade”. O aplicativo exige tempo para achar a roupa, dar o match e fazer a troca, o que permite calma e reflexão sobre o ato da troca em si. 

Lupa no perfil e nas motivações de quem compra roupa usada

Em 2016, a agência de publicidade brasileira Nova S/B divulgou números que refletem o perfil dos consumidores de roupas de segunda mão no período de crise econômica. Foram 4 perfis identificados: 1. Smart Buyers, representando 49%, são pessoas que valorizam o planejamento das compras, pois possuem pouca renda para esbanjar nas compras; 2. Pé no Chão, somando 26%, são pessoas que também planejam as compras, mas que têm orçamento para “experimentar” e comprar com menos preocupação; 3. Sobreviventes, representando 17%, são pessoas focadas no preço mais baixo e vivem sempre no limite do orçamento e 4. Ostentação, com 8%, são as pessoas que valorizam etiquetas e compram por impulso. A pesquisa ouviu 2.682 pessoas, acima de 18 anos, em todas as regiões do país.

Já Carolina mapeou o comportamento de consumo por faixa etária. Do mesmo jeito que um consumidor em Madureira busca a melhor diferença de etiqueta e preço final, o consumidor da Zona Sul também se liga nos “achados” na hora de garimpar. De 14 a 18 anos, Carolina destaca um público mais consciente, mais “estou reciclando meu lixo”. “Eles saem com uma sacolinha, porque vai fazer frio no dia e eles precisavam de um casaco. É um corte de geração”, relata ela. De 18 a 28, os drama do mercado de trabalho já chegou e eles se dividem em dois grupos: aqueles que esperam encontrar uma oportunidade incrível para comprar e os que entopem as sacolas.

Brechós, no plural

São muitos os modelos de venda de roupas usadas, mas a imagem tradicional do brechó e de quem compra em brechó se fundamentou em dois lugares. Um deles pertence à juventude hype, de construção do brechó como lugar que se pode achar uma jaqueta corta vento Nike por um preço amigo e juntá-la com uma calça de gari fazendo o match perfeito.  No outro espaço está o brechó de luxo, precedidos pelos tradicionais B.Luxo e Minha Vó Tinha, e cada vez mais ganhando espaço com araras de garimpos raros penduradas em lojas de roupas novas.

Comprar cinco peças usadas, ao invés de cinco itens novos numa fast fashion qualquer, concede a leve impressão de consumo consciente.

Luiza Guedes


Entre um e outro, está todo o resto. Sem o estímulo à discussão e sem a movimentação da maioria da população para esses espaços, esse anunciado lugar de consumo consciente nunca existirá na prática de forma ampla. Por isso, para Luiza, o Muambê é quase um consultório terapêutico. “Nós conversamos com todo mundo que vai nos visitar, falamos sobre o lado bom do reuso, desse movimento que está rolando, dessa indústria. O vintage, sendo roupa ou objeto, é uma desculpa para a gente falar sobre algo que a gente acredita”, afirma ela.

Promover o debate real entre o público, acessibilizar a linguagem da moda sustentável e a realidade da indústria da moda em si são caminhos possíveis para tirar o movimento das compras de segunda mão desse lugar nebuloso e garantir que o consumo de roupas usadas não despenque nos ciclos de apogeu econômico.

Promover o debate real entre o público, acessibilizar a linguagem da moda sustentável e a realidade da indústria da moda em si são caminhos possíveis para tirar o movimento das compras de segunda mão desse lugar nebuloso e garantir que o consumo de roupas usadas não despenque nos ciclos de apogeu econômico.  Para Carolina, o primeiro passo é reconhecer que, para massa da população brasileira, brechó “nunca foi sobre salvar o planeta, mas sobre ser muito barato”. 

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