Organização de mídia, pesquisa e educação sem fins lucrativos que atua por justiça socioambiental e climática por meio de uma perspectiva ecofeminista.

pesquise nos temas abaixo

ou acesse as áreas

apoie o modefica

Somos uma organização de mídia independente sem fins lucrativos. Fortaleça o jornalismo ecofeminista e leve a pauta mais longe.

O Que As Fast Fashion Não Estão Fazendo Para Mudar O Cenário De Exploração

Publicada em:
Atualizada em:
Texto
  • Marina Colerato
Imagens

Reprodução

9 min. tempo de leitura

Existe a possibilidade de uma fast fashion se mexer verdadeiramente em pró de uma moda mais consciente, justa, sustentável? Não seria sustentabilidade e fast fashion dois conceitos completamente opostos e, portanto, impossível de serem conciliados? São essas perguntas que surgem quando vemos varejistas famosas por despejar roupas no mundo fazendo projetos com apelo sustentável.

A resposta divide opiniões: há quem diga não haver qualquer chance de marcas de fast fashion se alinharem aos conceitos de sustentabilidade e há quem defenda que pelo menos elas estão fazendo algo frente às necessidades vigentes. É evidente que, a curto prazo, as grandes varejistas não vão a lugar nenhum e precisam fazer alguma coisa em resposta aos constantes questionamentos do público. Mas será que o que está sendo feito é realmente considerável?

No começo do ano, a H&M lançou a Semana De Reciclagem com a proposta de recolher roupas usadas para reciclá-las ou doá-las. A campanha foi polêmica não só por ter sido lançada durante a Fashion Revolution Week como também porque a quantidade de peças recolhidas estimadas demoraria 12 anos para ser reciclada (grande parte delas seria, na verdade, despachadas para países em desenvolvimento) e a soma representava o mesmo montante de peças novas que a empresa coloca em suas lojas a cada 48 horas.

fast-fashion-sustentabilidade-4
O modelo fast fashion não só trabalha vendendo mais a preços cada vez mais baixos, como também empurra toda a indústria para dentro desse sistema // Reprodução

Recentemente a Adidas lançou o tênis produzido com plástico retirado dos oceanos em parceria com a Parley Ocean, também teve a C&A fazendo parceria com a Malha para um projeto de upcycling e ações junto à Escola da Malha, e a Hering, por meio da Fundação Herman Hering, apoiou o Trama Afetiva, um projeto de “experiência colaborativa de criação em upcycling”.

Não é difícil notar o que todas essas ações têm em comum: o olhar para os resíduos e nenhum questionamento sobre métodos de produção, condições da força de trabalho, um real repensar sobre as matérias-primas, muito menos sobre seu modelo de negócio.

Se os resíduos são importantes, é imprescindível olhar para o que vem antes: a produção. De 60% a 80% dos impactos ambientais no planeta provêm do consumo doméstico. Isso quer dizer que a produção dos itens comprados por nós todos os dias – sejam eles itens de moda, alimentação, decoração, etc – é a grande responsável por emissão de gases do efeito estufa, poluição de ar, solos e águas, além de desmatamento.

A ausência de iniciativas para uma energia limpa

Apesar da informação que 10% das emissões de gases de efeito estufa provém da indústria têxtil não ser lá muito confiável, sabemos que a moda, por seu tamanho e importância, demanda muita energia em todo seu processo de produção. Na maioria dos países onde as roupas dessas grandes fast fashion são produzidas, como China, Índia, Bangladesh e Vietnã, a energia elétrica para manter as fábricas e máquinas em funcionamento provém do carvão, fonte de energia não-renovável e altamente poluente.

fast-fashion-sustentabilidade-5

Desde a COP21 em Paris no ano passado, muitas críticas foram tecidas pelo fato do encontro não colocar o dedo na maior ferida ambiental: nosso sistema de produção de bens de consumo atual. E a moda não escapou ilesa, afinal, são cerca de 150 bilhões de novos artigos de moda produzidos anualmente. As fábricas de moda consomem, sozinhas, mais de 130 milhões de toneladas de carvão para gerar energia (uma pessoa nos Estados Unidos, por exemplo, consome em média 6 mil kilos por ano entre consumo doméstico e transporte).
 

Os problemas de poluição do ar na China por conta da queima de carvão para gerar energia para as fábricas são bastante conhecidos // Reprodução

Ao adentramos no quanto as questões climáticas impactam na vida das pessoas, o problema fica ainda pior e um repensar dessa questão de energia e da produção de roupas se mostra ainda mais urgente.

Se as grandes varejistas de moda estão interessadas em fazer uma moda sustentável, não deveriam elas em um esforço coletivo investir, em parceria com os governos locais, em fontes renováveis de energia para operação das fábricas e máquinas que fazem seus produtos?

O problema continua com a poluição da água, devastação do solo e uso excessivo de plástico

Em um texto bastante certeiro, Maxine Bédat, CEO e cofundadora da Zady e Michael Shank, professor de desenvolvimento sustentável na Universidade de Nova Iorque, levantam outras questões acerca dos impactos ambientais da produção da indústria da moda para além das questões energéticas.

Por exemplo, mais de 80% das águas chinesas, até os lençóis freáticos mais perto do solo, estão poluídas e impróprias para consumo devido à produção industrial e agropecuária. A poluição das águas mais superficiais está fazendo com que seja necessário cavar cada vez mais fundo para conseguir água limpa, prejudicando a capacidade desses aquíferos.

fast-fashion-sustentabilidade-6
No Brasil e no mundo, a poluição das águas por conta da produção industrial é um problema sério e que atinge bilhões de pessoas // Reprodução

Depois tem o couro, um problema ambiental e social terrível, que vem acabando com cidades e com a saúde das pessoas por seu processo arcaico de curtimento, altamente tóxico e poluente. Poderíamos falar também da produção de cashmere a preços baixos, que está gerando desertificação por causa da criação excessiva de cabras para produção da matéria-prima. Isso sem falar na crueldade animal embutida no processo. Produzidas para suprir a demanda do modelo de fast fashion, quase toda matéria-prima virgem se torna um problema – do algodão cheio de pesticidas ao poliéster, matéria-prima mais utilizada no mundo, oriundo da exploração do petróleo.

Se as grandes varejistas de moda estão interessadas em fazer uma moda sustentável, não deveriam elas se responsabilizar pelo tratamento dos resíduos gerados na produção de seus produtos, no auxílio à implementação de tratamentos de esgotos nas fábricas fornecedoras e na busca de alternativas menos poluentes e realmente sustentáveis?

Sem falar nas questões da mão de obra

Considerada uma das empresas mais sustentáveis do mundo, a Adidas gerou bastante conversa ao finalmente lançar seu Primeknit com plástico 100% reciclado. Produzir novas peças a partir de resíduos tirados do oceano, com desperdício zero, é realmente algo sensacional. O problema começa, porém, quando isso é feito em edição limitada (são 7 mil pares frente a 301 milhões de pares produzidos por ano pela empresa), a tecnologia não é compartilhada e a ação não se perpetua.

O problema continua quando uma ação como essa não trata as questões relacionadas à poluição e mão de obra envolvidos na produção de todos os outros produtos da empresa. A Adidas produz a maior parte de seus produtos na China e dentro de um programa chamado “Lean Manufacturing”, que busca aumentar a eficiência, ou seja, produzir mais em menos tempo, e evitar desperdícios.

Em 2001, o programa mudou drasticamente a organização dentro das fábricas e colocou grande pressão em cima dos operários que precisam correr contra o tempo. Um estudo realizado pela Adidas constatou que os operários ficavam estressados com o programa, mas eventualmente acabavam se acostumando1 Leslie T. Chang, Garotas da Fábrica – pág 108 .

fast-fashion-sustentabilidade-3
Mulheres são maioria na indústria da moda, no Brasil e no mundo // Reprodução

Se formos adiante, vamos ver que frequentemente as grandes empresas pedem que seus fornecedores tenham melhores condições de trabalho devido à pressão dos consumidores. Mas ao mesmo tempo exigem custos mais baixos na produção. “A fábrica da Yuen Yuen que atendia a Adidas costumava oferecer uniformes aos operários. Em vista das pressões da Adidas para que diminuísse custos, começou a cobrar pelos uniformes, mas o cliente também fez objeção à nova prática. A Yuen Yuen decidiu então aboli-los, e hoje os operários trabalham com as suas próprias roupas”, explica a autora Leslie T. Chang em seu Garotas da Fábrica, que aborda as condições da vida das operárias na China moderna2 Ibidem – pág 107 .

Para produzir ainda mais, em ainda menos tempo, sem se preocupar com mão de obra, a Adidas promete uma fábrica totalmente automatiza, na Alemanha em 2017 e planeja também fazer o mesmo na França e Inglaterra. Com as chamadas “Speedy Factory” a ideia é, além de cortar os custos da mão de obra cada vez mais cara em países asiáticos, aumentar a produção em 30 milhões ao ano até 2020 para atingir a meta de crescimento. Isso não é exatamente um problema, o problema é que não há indícios de que a Adidas está capacitam os operários para outras funções com maiores habilidades e que possibilite recolocação dentro das fábricas.

fast-fashion-sustentabilidade-2
Os operários por trás das roupas em países como China, Índia e Bangladesh trabalham mais de 12 horas por dia e ganham menos do que 100 dólares por mês // Reprodução

E podemos continuar a levantar problemas. Na indústria da moda como um todo, cerca de 80% das trabalhadoras são mulheres e menos de 2% delas ganham o suficiente para viver em condições dignas. Para ganhar mais, elas precisam fazer horas extras e chegam a trabalhar mais de 75 horas por semana3 Ibidem – pág 13.

Se as grandes varejistas de moda estão interessadas em fazer uma moda sustentável, não deveriam elas economizar um pouquinho no marketing e nas grandes campanhas, e investir nas pessoas responsáveis por produzir seus produtos, para que elas tenham condições de vida mais dignas possibilitando e amplificando esquemas como o Fair Trade em suas cadeias de produção – e não só em linhas especiais?

Nós estamos nos contentando com pouco?

Depois desses dados todos, fica difícil ver algumas iniciativas como realmente relevantes e até mesmo interessantes. Não há problema nenhum em investir em upcycling ou reciclagem, pelo contrário, é extremamente importante e sabemos que os recursos financeiros para investimento em pesquisa está na mão das grandes corporações. Mas é urgente ir além. Ou melhor dizendo, já passou da hora. Enquanto muitas iniciativas se respaldam no discurso da “criação de uma moda sustentável”, prometendo um futuro brilhante, as empresas por trás delas estão destruindo nosso presente com a indústria que elas mesmas ajudaram a criar e insistem em ignorar.

Não podemos esquecer que grandes marcas de moda, como as citadas no começo do texto, são empresas centralizadoras de muito capital – financeiro e criativo. Se elas querem realmente criar uma moda mais sustentável e limpa, olhar para sua produção, se responsabilizar por ela e começar a agir em pontos cruciais – como investimento em energia limpa, desenvolvimento e inclusão social, e pesquisa e desenvolvimento de novas tecnologias para produção em ciclo fechado – é para ontem.

Sabemos que não é algo simples, muito pelo contrário. Por serem empresas gigantes, com cadeias de produção fragmentadas e descentralizadas, operarem em países estrangeiros e terem responsabilidades com acionistas e CEOs, além das soluções exigirem articulações multissetoriais, endossar esses problemas se torna um desafio imenso para as grandes marcas. Porém, é necessário, urgente e só será possível se as ações forem mais a fundo no problema.

Na verdade, precisamos ser transparentes e enfáticos: isso tudo já poderia ter sido feito se não fosse única e exclusivamente o lucro que guiasse esses negócios, afinal, estamos falando de um modelo econômico cujo principal objetivo é acumular renda. Como disse Tamsin Lajune, fundadora do Ethical Fashion Forum, acima de tudo, é necessário reconhecer “o elefante branco na sala”, o modelo baseado em crescimento contínuo que exige vender e lucrar cada vez mais. É ele que devemos ter em foco se queremos, realmente, uma indústria de moda nova, descentralizada e sustentável.

* * *

Jornalismo ecofeminista a favor da justiça socioambiental e climática

Para continuar fazendo nosso trabalho de forma independente e sem amarras, precisamos do apoio financeiro da nossa comunidade. Se junte a esse movimento de transformação.