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3 Motivos Pelos Quais Pessoas Negras Não Se Engajam no Movimento dos Direitos dos Animais e Por Que Elas Deveriam

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Kenyatta Hinkle

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A questão dos direitos dos animais pode ser controversa, especialmente nas comunidades negras populares, porque, normalmente, é vista como um problema de "pessoas brancas".

Por exemplo, considere como as celebridades brancas como Ricky Gervais, Sharon Osbourne, Piers Morgan, entre outras, denunciaram publicamente o assassinato da leoa Cecil no Twitter. Entretanto, essas mesmas celebridades permaneceram em silêncio durante a luta #blacklivesmatter – o que não passou despercebido.

Na verdade, no The New York Times, a famosa feminista negra Roxane Gay escreveu: “Um apresentador de um programa noturno não chorou em frente às câmeras essa semana pela perda de vidas humanas. Ele certamente não precisa fazê-lo. Porém ele chorou por um leão, e isso é digno de reflexão”.

Entretanto, enquanto o movimento popular dos direitos dos animais tem a reputação de negligenciar pessoas não-brancas e nossa luta única contra a injustiça sistêmica, existe um movimento de direitos dos animais interseccional e diversificado entre ativistas negros que vem investindo na justiça anti-colonial.

Eu venho lutando pelos direitos dos animais desde os meus 18 anos (agora eu tenho 26) e fiz a transição para o veganismo depois de ser exposta à literatura de negros veganos há cerca de 2, 3 anos.

Por conta da interseccionalidade da minha identidade, eu costumava me sentir isolada na maioria dos movimentos sociais populares como feminismo, anti-racismo e direitos dos animais – mas depois eu encontrei uma comunidade de veganos negros e ativistas pelos direitos dos animais que conversavam com a minha experiência como uma mulher negra vivendo nos EUA.

Eu sinto que a melhor forma de lutar pelos direitos animais é não comer seus corpos.

Para ser clara, veganismo e direitos dos animais não são a mesma coisa. Alguns vegans [ler nota da editora] pensam em questões de saúde e não levam em consideração a exploração animal, e há ativistas dos direitos animais que se importam com os animais, mas comem carne. Eu uso os termos de maneira intercambiável porque eu sinto que a melhor forma de lutar pelos direitos dos animais é não comer seus corpos. O veganismo é uma prática política para mim.

Entretanto, porque o veganismo e o movimento dos direitos dos animais têm a reputação de serem brancos e excludentes, muitos amigos negros, família e membros da comunidade têm uma séria dificuldade para entender o que ambos os tópicos têm a ver com eles e porque eles deveriam se envolver – principalmente quando eles têm que lidar com brutalidade policial, racismo sistêmico, e injustiças múltiplas.

Nesse artigo, eu quero destacar como o movimento dos direitos dos animais e o veganismo podem ser ferramentas úteis para lutar contra a supremacia branca e o patriarcado, e que é de interesse da nossa comunidade defender o direito dos animais ao lado dos nossos.

No processo de falar sobre os meus próprios valores, eu encontrei diversas razões comuns para que feministas negras e anti-racistas falem que não vão (ou não podem) apoiar os direitos animais ou se tornar vegans.

A lista está baixo, com as tentativas de falar sobre cada uma delas, e oferecer sugestões de como o movimento vegan e dos direitos animais podem incorporar às experiências de pessoas negras enquanto elas progridem.

O direito dos animais e o veganismo podem ser ferramentas úteis para lutar contra a supremacia branca e o patriarcado.

1. “VEGANISMO É PARA PESSOAS BRANCAS”

Veganismo, que é a prática de não consumir nenhum produto de origem animal, e o movimento de direitos dos animais, que é um movimento político cujo principal objetivo é acabar com o abuso e exploração animal, têm uma reputação de serem “coisas de pessoas brancas”.

Isso não é supresa se considerarmos que a maiorias das representações de veganismo são dominadas por corpos brancos e a maior parte do ativismo gira em torno de priorizar teorias de pessoas brancas e suas perspectivas.

Consequentemente, questões que impactam pessoas não-brancas – como racismo, classicismo e herança – são normalmente excluídas ou vistas como irrelevantes. Sendo assim, não há nada nesses movimentos ou campanhas capazes de atrair pessoas negras.

Observe essa cena da série Orange Is The New Black onde prisioneiras imitam “políticas de pessoas brancas” e, claro, o veganismo é mencionado. Como essa cena demonstra, é praticamente uma verdade amplamente aceita dentro da comunidade negra que os direitos animais são coisas de pessoas brancas e não têm espaço nos movimentos de justiça racial.

Soul Food É Uma Culinária Que Representa Conexão

Existem várias razões pelas quais pessoas negras comem carne e não se conectam com o movimento de direitos dos animais. Uma delas é porque soul food faz parte da nossa alimentação por gerações e é altamente dependente da carne de animais. Em diversas comunidades negras, soul food é normalmente tida como um símbolo nostálgico de família, comunidade, religião, resiliência, e força.

Se você vai fazer uma campanha para incentivar negros a se tornarem veganos ou ativistas dos direitos dos animais, você deve falar com a nossa história única.

Diversos negros comem soul food não vegana por conta de tradição, e não porque eles estão buscando oprimir animais. Ao contrário, a culinária reflete a maneira como conseguimos cuidar uns dos outros durante e imediatamente depois da nossa escravidão nesse país. Saciar-se é uma demonstração de abundância. Sendo assim, faz sentido nós termos uma ligação emocional com essa culinária.

Então, se você vai fazer uma campanha para incentivar negros a se tornarem veganos ou ativistas dos direitos dos animais, você deve falar com a nossa história única – não atacá-la. Movimentos populares dos direitos dos animais não fazem isso. Eles focam apenas “nos animais” sem contextualizar.

Quando você tem grupos de direitos dos animais como o PETA (People For Ethicial Treatment Of Animals) fazendo campanhas sobre veganismo para “ficar em forma” ou “ser sexy”, isso não tem absolutamente nada a ver com a história racializada do consumo de carne nos EUA. Além disso, perpetua um padrão branco de beleza e aceitação de corpo que tem uma história horrenda de difamar corpos de mulheres negras.

Veganismo Não É Realmente Branco, Mas Sua Cobertura Na Mídia É

Diversas pessoas não brancas usam o veganismo como ferramenta de resistência para lutar contra a supremacia branca. Existem pessoas negras que são veganas e acreditam na importância de falar sobre o corpo dos animais quando discutimos opressão. Bryant Terry, um chefe vegan conhecido, ressalta:

“Nós viemos de um legado de pessoas negras que cultivavam suas próprias frutas e vegetais no jardim, pessoas negras que eram fazendeiros e comiam comidas integrais… Infelizmente, quando a mídia fala sobre alimentação saudável e veganismo, ela foca apenas em pessoas brancas privilegiadas. Enquanto as minhas influências vieram de pessoas não-brancas”.

Violência policial não é a única forma de injustiça a corpos negros hoje. Veganos não-brancos lutam contra um sistema alimentício que busca eliminar uma pessoa negra a cada refeição. Diversas áreas urbanas de baixa renda, onde pessoas negras vivem, são desertos de comida inundados por redes de fast-food e uma abundância de problemas de saúde relacionados à alimentação.

Isso não é acidental. Negros de baixa renda estão morrendo como resultado de um sistema racista e por conta das opções limitadas de comida. O sistema racista de alimentação, que desproporcionalmente descrimina nossos corpos, é algo com o qual nós devemos nos preocupar.

O Sistah Vegan Project, criado pela feminista negra Dr. A Breeze Harper, é um tipo de ativismo preocupado com essas questões. Ela destaca, especialmente, como a comida pode ser uma ferramenta para as pessoas negras descolonizarem seus corpos.

Negros de baixa renda estão morrendo como resultado de um sistema racista e por conta das opções limitadas de comida.

Se comer comidas ruins, com baixos nutrientes e que está nos matando é produto de racismo e colonização, então comer comidas saudáveis e ricas para combater nossos problemas de saúde é um ato político e ativista. O consumo de produtos de origem animal, especialmente os produzidos pela tóxica indústria da carne, é uma violência contra o nosso corpo. Além do mais, consumir a carne de um ser oprimido capaz de sentir dor e prazer é um tópico válido a ser investigado por nossa comunidade.

Isso não quer dizer que nós temos que abrir mão das delícias comestíveis da nossa herança. Negros veganos já criaram, inclusive, vegan soul food. Nós acreditamos que soul food não deve ser uma culinária de morte, mas sim repleta de comidas vivas capazes de sustentar nossa saúde e nosso espírito.

Dizer simplesmente que o veganismo é “coisa de branco” é apagar os ativistas negros veganos responsáveis por contribuir com sua energia a essa causa. Enquanto as pessoas brancas ganham mais atenção por suas campanhas e movimentos, isso não significa que lutar pelos direitos dos animais e ser vegan é estritamente “branco”.

Dizer simplesmente que o veganismo é coisa de branco é apagar os ativistas negros veganos responsáveis por contribuir com sua energia a essa causa.

2. “PESSOAS NEGRAS SEMPRE SÃO COMPARADAS COM ANIMAIS – E ISSO É DESUMANO”

Outra razão pela qual as pessoas negras, em geral, são resistentes ao movimento popular dos direitos dos animais é porque os membros desses espaços e movimentos tendem a fazer a comparação entre a opressão de pessoas negras e a opressão dos animais – o que ignora a sensibilidade legítima que os negros têm nas comparações com os animais em geral.

Há uma história racista profundamente arraigada nos EUA , onde os negros eram tratados como se fossem animais. Na verdade, a escravização exclusiva dos povos africanos nas Américas é ainda referida como a escravidão “fiduciária”. Não ironicamente, fiduciária é o nome dado para um rebanho de animais que são “propriedade” dos seres humanos.

Ao nos animalizar, as pessoas brancas acharam a justificação perfeita para nos abusar e estuprar, usando-nos para o trabalho sem se preocupar com o nosso bem-estar, usando-nos para fazer experimentos médicos excruciantes (sem anestesia), e até mesmo nos matando e deixando nossos corpos nas ruas durante horas (como Mike Brown) como se fossemos um mero acidente de estrada.

A estratégia de animalizar as pessoas negras para poder justificar a violência contra nossos corpos continua até hoje. Por exemplo, em março de 2015, durante uma investigação de racismo no departamento de polícia de São Francisco, foram descobertos alguns textos onde os policiais se referiam às pessoas negras como “macacos” e um texto relacionado dizia: “Não é contra a lei matar um animal”.

Ao nos animalizar, as pessoas brancas acharam a justificação perfeita para nos abusar e estuprar.

O Movimento Dos Direitos Dos Animais Se Apropria Das Experiências De Opressão Dos Negros Para Ganhar Simpatia Para Os Animais.

Apesar da estrutura de opressão de animais e pessoas negras serem similares, comparar constantemente a opressão dos animais com a escravidão ou linchamento de pessoas negras parece sugerir que a única maneira na qual o racismo cabe na discussão é por sua utilidade em produzir analogias para beneficiar apenas os animais.

Comparar as opressões é violento e explorador, principalmente porque a opressão racial não acabou. Considerando que o movimento branco de direitos dos animais não expressou de maneira explícita um desejo de levar o trabalho anti-racista a sério, parece então que eles estão usando nossa luta para o próprio benefício. Ficar em choque com o abuso dos animais e permanecer silencioso sobre as injustiças raciais não parece fazer sentido.

Por Que Os Animais Devem Importar Para Os Ativistas Negros (Apesar Das Campanhas Ofensivas Do Movimento Branco)

Apesar de muitas campanhas dos direitos dos animais serem problemáticas, isso não significa que nós, como pessoas negras, não temos nossas próprias razões para nos importarmos com os direitos dos animais e a violência sistêmica direcionada aos seus corpos.

Ativistas negros veganos tendem a evitar comparações de opressão e ao invés disso abordam as intersecções da opressão dos animais e do racismo de maneira profunda.

A divisão entre “humano” e “animal” para espelhar a divisão racial entre “branco” e “preto”.

De fato, parece que na nossa sociedade ser “humano” significa “ser branco”. Se você não é branco, você é geralmente referido como “exótico”, “primitivo”, “irracional”, e/ou “animalesco”.

Não faz sentido ancorar nosso respeito e humanidade ao desrespeito de um outro grupo de seres.

Uma vez que vivemos em uma supremacia branca, desviar da branquitute tem consequências graves. Se você não é branco, é mais fácil para a nossa cultura vê-lo como um animal e justificar a violência em sua direção. Sendo assim, levando em consideração que as pessoas negras nos EUA são sempre comparadas com animais, nós geralmente respondemos tentando mostrar que somos humanos e merecemos ser tratados como um. Entretanto, isso é problemático.

Enfatizar que “somos humanos” é meramente uma maneira de dizer que somos igual às pessoas branca e temer o termo “animal” é ter medo de ser visto como desvio da branquitute. Não faz sentido ancorar nosso respeito e “humanidade” ao desrespeito de um outro grupo de seres.

Como negros, se tememos ser rotulados como “animal”, porque isso significa poder ser usado, abusado, objetificado e morto, então talvez nós devêssemos questionar por que os animais são automaticamente merecedores de abuso de tal forma que ficamos aterrorizados até mesmo de sermos chamados de um.

3. “EU TENHO QUE LIDAR COM A OPRESSÃO – NÃO TENHO O PRIVILÉGIO DE ME IMPORTAR COM OS ANIMAIS”

A feminista teórica negra Patricia Hill Collins escreveu: “Eu pude perceber que é possível ser centrada nas próprias experiências de um [movimento] e envolvida em coalizões com outros [movimentos]”. Enquanto nossa geração usa o termo “interseccionalidade”, nós frequentemente esquecemos que precisamos ativamente fazer conexões, até mesmo com corpos que não se parecem com os nossos.

Ser membro de uma classe oprimida não te isenta de ser opressivo com outros. Devemos abster-se de ficar falando, confortavelmente, apenas da nossa própria opressão específica.

Corpos de animais suportam algumas das mais grotescas e notáveis formas de abuso dentro do nosso sistema capitalista moderno e devemos considerá-los em nosso ativismo. No final do dia, a libertação de ninguém irá ocorrer dentro de um contexto de injustiça para um outro grupo de seres sencientes.

A facilidade com a qual ignoramos o sofrimento dos seres sencientes considerados “menos importantes” é igual à facilidade com a qual pessoas brancas costumam ignorar nossa opressão. Nós devemos estar conscientes ao reproduzir o ciclo de violência em nossos próprios movimentos.

Ser membro de uma classe oprimida não te isenta de ser opressivo com outros.

Nós temos o nosso próprio movimento vegano de direitos dos animais acontecendo na comunidade negra (#BlackVegansRock) e ele é parte da luta contra a supremacia branca.

Seja você se apropriando da sua saúde por meio da descolonização do seu corpo da supremacia branca porque você vive em um deserto de alimentos racista, seja você plantando seu jardim como o jardineiro guerrilheiro Ron Finley, ou seja você se recusando a olhar para os animais como seres a serem consumidos, objetificados, ou oprimidos, você está lutando contra a supremacia branca e é por isso que o veganismo é uma ferramenta de resistência para as pessoas negras.

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Notas Da Escritora:

Aph Ko gostaria de agradecer sua irmã, Syl Ko, por ajudá-la a desenvolver algumas ideias desse artigo.

Notas Da Editora:

Esse texto contempla a realidade norte-americana do movimento vegano, racial e feminista. A escritora é mulher, afro-americana, feminista e vegana ativista. A autora focou, principalmente, nas questões de alimentação vegetariana (livre de qualquer ingrediente de origem animal) no texto.

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Imagem Capa: Kenyatta Hinkle

Originalmente publicado no Everyday Feminism. Traduzido e publicado com autorização para o Modefica.

Aph Ko é escritora contribuinte do Everyday Feminism. Uma feminista interseccional investindo em explorar novas formas de resistir aos sistemas de dominação através do auto-cuidado e prazer, ela tem um BA em Estudos da Mulher e Gênero e mestrado em Estudos/Culturais de Comunicação. Ela é o criadora da nova comédia web-série “Black Feminist Blogger”, que destaca a enorme quantidade de trabalho invisível em blogs. Em seu tempo livre, ela tende a voltar a ler a autobiografia Angela Davis. Siga-a no Facebook aqui.

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