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Série Aruanas é Aula sobre Ativismo Ambiental, Política e Extrativismo

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  • Juliana Aguilera
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Aruanas, lançada em junho, é a primeira série do extenso catálogo da Rede Globo a tratar de ativismo ambiental, desmatamento, garimpo ilegal e conflitos de terra na Amazônia. Na trama, três amigas de infância criam a Organização Não Governamental (ONG) Aruana com objetivo de atuar em favor de questões ambientais pelo Brasil.

Esta matéria contém spoilers da série para fins de argumentação e comparação com a realidade.

Ao receber uma denúncia anônima sobre um suposto dossiê capaz de revelar um crime ambiental cometido por uma mineradora na região amazônica, a ativista Luiza Laes, interpretada pela atriz Leandra Leal, viaja até a cidade fictícia de Cari, escolhida para abrigar a trama. Por aí, começamos a acompanhar um enredo bem didático sobre como acontece as ilegalidades na região, a relação dessas ilegalidades com Brasília, e como essas ações reverberam na vida de populações pobres, ribeirinhas, indígenas e, claro, no meio ambiente.

Co-produzida pela Marina Farinha Filmes, Aruanas teve parceria técnica do Greenpeace e apoio de 28 ONGs, entre elas Anistia Internacional, WWF, UN Environment e UN Women. Toda a narrativa foi pensada para ser simples e didática, mas isso está longe de ser uma crítica. A escolha do tom educativo é bem pensada quando lidamos com uma realidade no qual o atual governo, e parte da população, atacam verbalmente ONGs, ativistas, jornalistas e acreditam que para crescer economicamente é necessário destruir o meio ambiente. Logo na primeira cena, Luiza encontra o jornalista Otávio Mendes (Sérgio Pardal), responsável por entregar o dossiê às protagonistas, e já é avisada: “tem gente ficando doente. A KM não é o que parece”. Na série, KM é uma empresa mineradora, uma das maiores do país. O documento faz denúncias seríssimas sobre sua atuação. Junto com Luiza, a advogada Verônica Muniz (Taís Araújo) e a jornalista Natalie Melo (Débora Falabella) passam a se dedicar ao caso.

A escolha do tom educativo é bem pensada quando lidamos com uma realidade no qual o atual governo, e parte da população, atacam verbalmente ONGs, ativistas, jornalistas e acreditam que para crescer economicamente é necessário destruir o meio ambiente.

Em boa parte dos primeiros episódios acompanhamos a inexperiente estagiária Clara Ferreira (Thainá Duarte), que poderia ser qualquer um de nós: nova no assunto, ela não conhece muito bem a realidade e, apesar de bem intencionada, pisa em falso em diversos momentos. Somo apresentados também ao “vilão” e sua missão: Miguel Keriakos (Luiz Carlos Vasconcelos), fundador da KM, descobre que a região de proteção ambiental El Dorado é fonte abundante de minérios valiosos. A dimensão de sua riqueza é medida como “duas serras peladas”. Mas floresta de pé não é com ele, figura clichê e emblemática da mentalidade extrativista brasileira: “quem gosta de floresta é índio e celebridade”.

Cari, Cidade Pobre Para Muitos, Rica Para Poucos

Tensão é o que não falta nos episódios, mas a ambientação da região norte é uma quebra constante e gostosa de acompanhar. Música, comida, paisagem, cenas cotidianas de uma vida pacata e regada à calor e pobreza dão cara à Cari. Com uma narrativa que amarra diversas problemáticas da região, observamos, como pano de fundo, a falta de saneamento, o mercado negro de ouro, a prostituição infantil e de mulheres imigrantes, o trabalho análogo à escravidão. Há uma leve pincelada, também, sobre o desenrolar da mentalidade dos moradores da cidade, que acreditam na fala de progresso de Miguel. A hostilidade com a presença dos ativistas também é demonstrada em ataques e na retórica do desenvolvimento local.

Mesmo diante das ameaças, o grupo insiste em continuar sua investigação: Otávio é assassinado, mas o delator do dossiê ainda vive. O encontro com a viúva do jornalista e um ex-funcionário da KM, afastado por doença, começam a tangibilizar o problema: a água contaminada pelo mercúrio está causando um quadro de doenças que atingem a população local. Alguns dos sintomas descritos são convulsões, dores de cabeça, desequilíbrio e perda de movimentos. A luta se intensifica e aglutina diversas questões que tangem as práticas extrativistas predatórias: os interesses do empresário – que busca em Brasília a aprovação de um decreto para a extinção da reserva -, a saga para encontrar o dossiê original e tangibilizar os impactos da KM na região e a luta de Natalie na emissora que trabalha para expor as irregularidades, o desmatamento e a ausência do poder público.

Realidade local

O enredo explica o que é um ativista na prática e quais riscos ele corre ao comprar briga com grandes mineradoras e outras empresas do tipo. Luiza é responsável por uma boa parte dessas cenas. Ela é a ativista in loco, que agrega uma dose de suspense à trama e quem se arrisca em missões para encontrar os garimpos ilegais de Miguel. Já Natalie traz uma outra verdade: a dificuldade de pautar jornalismo ambiental na grande mídia. Seus superiores dizem que ambientalismo despenca audiência. É Natalie quem consegue entrar na reserva de Cari e encontrar o antropólogo Gregory Melloy (Gustavo Vaz). Gregory é um adendo a série, responsável por reforçar o time de ativistas e fazer a ligação com a população indígena local, pouco representada na história até o momento, mas que passa a ter voz.

O jornalista Otávio Mendes é o primeiro a ser assassinado mas, ao decorrer dos episódios, vamos conhecendo as vítimas de toda a ganância do garimpo. Ex-funcionários afastados da KM pela saúde deteriorada em consequência do contato constante com o mercúrio desaparecem ou morrem. Garimpeiros, fazendeiros e, claro, a população indígena, não escapam do massacre cometido pela KM em favor de sua expansão. As populações originárias, em especial, ganham destaque quando Gregory leva Natalie até um dos povos da reserva. O local é encontrado destruído, com os corpos caídos no chão, banhados de sangue. Essa parte, ainda que um pouco romantizada, elucida o que é apenas dito ao longo da série: o genocídio extrativista tem diversas facetas.

O vilão e Brasília

Miguel poderia ser apenas mais um empresário sociopata e ganancioso, mas ele é muito mais do que apenas “o vilão”. A construção do personagem o torna um dos mais interessantes da série: logo na sua primeira aparição, somos apresentados ao “avô da Gabi”, um homem que ama muito sua neta com deficiência. Seu discurso de progresso, geração de renda e acúmulo de patrimônio se embasa na melhoria da vida da população local e no futuro da neta, que é órfã de pai e mãe. Em especial, esse cuidado com Gabi remete a um episódio emblemático na política brasileira atual: a votação do Impeachment de Dilma Rousseff, em 2016, na Câmara dos Deputados, no qual observamos o discurso voltado à família, amigos e interesses pessoais.

O curioso, e pouco explorado na série, é uma rápida fala sobre sua infância, com Olga Ribeiro (Camila Pitanga), a lobista que Miguel contrata para derrubar o decreto responsável por instituir a reserva de Cari e  personagem responsável por introduzir Brasília à série, conduzindo a narrativa para os jogos de interesse que acontecem na política brasileira. O diálogo revela ecos de meritocracia: Miguel nasceu pobre, filho de garimpeiro, e perdeu o pai soterrado no garimpo. Quando acende, o vemos reproduzindo as condições impróprias de trabalho com os funcionários da base. Já em outra faceta, ele desmente diversas vezes os avisos de Filipe Braga (Gustavo Falcão), o diretor de relações institucionais da KM, sobre as análises de riscos necessárias – e asseguradas por lei – para o desmatamento da região. “Da fiscalização cuido eu”, responde.

Verônica, assim como Olga, puxa o congresso nacional para a trama. Ela vai até a capital para conseguir uma liminar para derrubar o decreto de extinção da reserva. Sua passagem pela cidade é um verdadeiro ensino básico de política, recheada de falas educativas. Em especial uma, no qual um ministro que, em tese, é comprometido com a agenda ambiental reforça a máxima do desmatamento em pró do “desenvolvimento” – similaridades com a realidade não são meras coincidências.

Conclusão

Aruanas não é livre de falhas. Elas acontecem aqui e ali e podem dar aquele ar de sessão da tarde em alguns momentos. Outro elemento que serve para fins didáticos, mas pode chegar a incomodar é a romantização de cenas que são organizadas e bonitas demais. O roteiro é bem amarrado e abre espaço para pincelar até mesmo o interesse estrangeiro na reserva e os conceitos da Lei de Acesso à Informação (LAI) e delação premiada. A quebra do assunto ambientalismo acontece com uma boa dose da vida privada dos personagens, o que ajuda a aprofundar suas personalidades, sem fugir da surpresa máxima, que sempre acontece no último episódio.

Fique sabendo que a atriz Leandra Leal já deu declarações pedindo o apoio do público para que Aruanas ganhe segunda temporada. Antes mesmo do clamor da continuação da série, ela precisa quebrar barreiras e chegar a casa dos brasileiros. A produção foi vendida para mais de 150 países, disponibilizada em 11 línguas, mas por aqui está presa atrás de um paywall de R$ 20 ao mês, exclusivamente na Globo Play. Vivemos o momento perfeito para termos teasers convidativos da série entre comerciais de jornais e novelas, no horário nobre, assim como ocorreu com Carcereiros e Sob Pressão. A ficção da história é quase um espelho de casos da política atual brasileira, conhecida por poucos, o que reforça a importância dessa produção estar aberta e acessível para mais pessoas.

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