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Crise Climática Põe em Risco Comunidades Extrativistas Tradicionais na Amazônia

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  • Juliana Aguilera
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Victória Lobo

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O futuro não é para as árvores amazônicas. Ao menos, não o futuro com o aumento da temperatura global e das mudanças climáticas, é o que mostra um estudo realizado por pesquisadores de diversas universidades brasileiras e publicado na revista científica Biological Conservation.

Utilizando modelos de nicho ecológico, o estudo faz projeções para 2050 da distribuição geográfica de 18 espécies de palmeiras e árvores que são importante fonte de renda para populações tradicionais em reservas extrativistas (RESEX) no bioma. Na região, lideranças já sentem que as alterações ambientais provocadas pelo homem, como desmatamento e eucaliptocultura, afetam a qualidade de vida de plantas essenciais para a comunidade local, como as castanheiras.

O estudo tentou encontrar a resposta para três perguntas: 1. As espécies de plantas vão experimentar redução de suas áreas de adequação ambiental em um cenário de crise climática previsto pelo IPCC (Painel Intergovernamental sobre Mudanças Climáticas)?; 2. Existe uma região onde essas espécies ocorrerão no futuro e qual os esforços de conservação devem ser priorizados, principalmente no sentido de criação de unidades de conservação?; 3. baseado nas informações disponíveis nas APAs (Áreas de Proteção Ambiental), as famílias que vivem em RESEX serão afetadas pela extinção das plantas que elas usam?

As RESEX surgiram na década de 1970, quando as frentes de colonização no norte do país, promovidas pelo governo militar, representaram uma ameaça ao modo de vida baseado no extrativismo sustentável praticado por populações locais tradicionais. Por conta dessas invasões, as populações tradicionais fizeram demandas que resultaram na criação de reservas extrativistas, que se enquadram na categoria de Uso Sustentável (US) – essa, por sua vez, pertencente às Áreas de Proteção Ambiental. Hoje, essas reservas somam 149 mil km² (um pouco mais do que o tamanho do estado do Ceará) da Amazônia Legal e representam 80% das RESEX brasileiras.

O grupo avaliou 18 espécies de plantas, entre elas: castanha-do-brasil/castanha-do-pará, açaí, tucumã, pupunha, babaçu, andiroba, cupuaçu, seringueira e buriti, em 56 RESEX da Amazônia brasileira. Para criar as projeções futuras, em uma média para 2041-2060, os pesquisadores geraram modelos de nicho ecológico 1 técnica que utiliza dados para conceber modelos que expliquem a distribuição probabilística de certa espécie no meio ambiente e aplicaram modelos de circulação geral, com projeções de variáveis climáticas que simulam o comportamento da circulação atmosférica. Foi também utilizado o cenário no qual as tendências de emissões de CO2 seguem sem políticas de mudança de clima.

Esses resultados foram combinados ao conjunto de previsão de todas as espécies e, assim, o estudo conseguiu criar um mapa com sobreposição de projeções futuras. Áreas que possuem modelos 100% sobrepostos foram tidas como de “alta adequação ambiental”, ou seja, que possuem condições adequadas para a ocorrência de todas as espécies. A equipe também obteve a lista das principais espécies vegetais extraídas em cada RESEX para investigar a contribuição dos produtos extraídos para a renda das famílias. Foram consultadas plataformas como Global Biodiversity Information Facility, Herbário Virtual do Jardim Botânico do Rio de Janeiro, ICMBio, IBAMA e CNUC (Cadastro Nacional das Unidades de Conservação).

Os impactos

No cenário climático atual, a maioria das espécies apresentam áreas de adequação ambiental na Amazônia brasileira, principalmente na região central. Para o futuro, os modelos apontam a redução destas áreas para 11 espécies, 9 delas podendo desaparecer de algumas RESEXs. A Castanha-do-Pará, em especial, poderá sofrer as maiores perdas – cerca de 35 mil km². Em geral, as projeções apontam que as perdas serão mais significativas nas regiões Sul e Ocidental. Os resultados ainda indicam que 21 RESEXs podem perder a área de adequação ambiental para ao menos uma espécie de árvore extrativista. Já quatro delas, próximas à divisa com a Bolívia, correm o risco de perder tais espaços para todas as espécies avaliadas no estudo.

No atual clima, as áreas de adequação ambiental somam 23 mil km² nas RESEX. No futuro, esse valor deve decrescer para 2 mil km², significando uma redução de 98%. Apenas 4 das 56 RESEX permanecerão com capacidade de dispor de um ambiente saudável para todas as espécies no futuro.

Segundo o artigo, o impacto da perda dessa diversidade será significativo para a população local: a diminuição das castanheiras pode impactar cerca de 996 famílias na região; a do açaí afetará 288 famílias extrativistas; no caso da seringueira, serão 332 famílias e no da copaifera, 368 famílias. Apesar dos números, o texto alerta que existem falta de informações precisas sobre o uso das espécies em todas as RESEXs, ou seja, a quantidade de grupos impactados pode ser ainda maior.

A castanha-do-pará corresponde a uma importante fonte de renda regional. Em 2019, 30 mil toneladas foram extraídas da região Norte, representando, pelo câmbio de março de 2021, US$ 22 milhões (R$ 116 milhões). Essa quantidade corresponde a cerca de 93% da produção nacional da castanha. A importância da árvore também é reforçada por Dilva Araújo, vice-presidente da Associação dos Micros e Mini Produtores Rurais e Extrativistas das Comunidades do Repartimento dos Pilões e Vila Nova (ASMIPPS). “A castanha é o carro-chefe das famílias tradicionais, que estão lá há anos”, explica, “a economia dentro das comunidades e do próprio município gira em torno do período da castanha”.

Dilva explica como funciona a dinâmica local: o período de colheita é de fevereiro a julho, então, em dezembro, as famílias já começam a se planejar para as vendas. “Eles já ficam na expectativa, já sabem se vai dar muito ou pouco. Dentro da comunidade é um vício as pessoas pegarem dinheiro adiantado do atravessador, então, eles planejam, constroem e melhoram suas casas, investem na agricultura, no plantio”, explica. As famílias também plantam outras culturas de curto prazo, como a banana, mamão e hortaliças, mas a renda provinda delas é pouca e incerta, logo, a castanha é tido como uma segurança financeira.

Graças a cultura de receber adiantado, os moradores podem contar com o dinheiro do atravessador para situações de emergência como, por exemplo, se algum familiar adoecer e precisar ir à cidade para fazer um tratamento. Basta que o agricultor extrativista ligue para o atravessador e esse, ciente que terá a castanha no futuro, lhe adianta o dinheiro. Ou seja, como Dilva afirma, “é a dependência total da floresta”.

Novas atividades e conflitos

A chegada de novos moradores e atividades econômicas na região não é recente. Carlos Ramos, engenheiro florestal e liderança da Rede Intercomunitária Almeirim em Ação (RICA), conta que, historicamente, os coronéis donos de terras na região nunca escutaram as comunidades locais. A tendência era achar que, por serem donos das terras, também se sentiam donos das pessoas que lá viviam. Quando o Grupo Jari chegou à região para ocupar estas áreas, na década de 1960, em um primeiro momento, o respeito às comunidades foi mantido. “Só que, com o passar do tempo, com a troca de dono, esse diálogo enfraqueceu e começou a invasão nas áreas das comunidades”, explica.

Em 2014, o conflito com a madeireira tomou as manchetes nacionais – e é relatado no relatório Fios da Moda: Perspectiva Sistêmica para a Circularidade. Carlos participou da mobilização das 11 comunidades para a criação da RICA: “elas não estavam organizadas, tinham dificuldade de conversar entre si, mas tinham um problema em comum: a Jari”. A rede intercomunitária, da qual a ASMIPPS faz parte, conseguiu criar um espaço de escuta, o que foi considerado como grande avanço.

A RICA trouxe a empresa e o Ministério Público para a conversa, no qual a primeira pauta a ser discutida era a fundiária, o ordenamento territorial dessas comunidades, e a segunda, a comercialização dos produtos da floresta. O fortalecimento comunitário resultou também em um pedido de criação de reserva extrativista na região, que foi protocolado no ICMBio. “Em um primeiro relatório, (o ICMBio) estava de acordo em continuar os estudos, foi bem legal, mas nesse contexto de hoje, o ICMBio está muito fragilizado, a gente acredita que não vai sair agora”, comenta.

Apesar dessas conquistas, Dilva aponta mudanças que a comunidade já têm sentido desde 2014. “A gente não tinha carapanã2 pernilongo na nossa comunidade, hoje temos muito. Tínhamos noite sossegada, não usavamos mosquiteiros”, relata, “(atualmente) você precisa ter o ventilador, o mosquiteiro. Hoje a comunidade tem energia, a gente não sabe dizer se foi pela chegada dela, mas sempre apontamos para essas questões de desmatar, queimar”. Dilva também cita que cresceram as atividades de eucaliptocultura e pastos próximos à comunidade e as investidas de empresas que têm interesse local e conseguem alienar os moradores.

Ela explica que existe um ditado na comunidade que diz “é melhor eu me encostar em uma árvore que tem folha do que uma que não tem”, ou seja, muitos moradores veem como vantajoso mudar as atividades econômicas da região. “A gente sabe que quando chega no final, ele se quebra todinho e quebra os outros juntos, porque o grande nunca vai olhar para o pequeno”, a liderança ressalta. A mudança em relação a água também é sentida: na sua infância, há 40 anos, Dilva viveu em um local com um igarapé imenso, no qual podia pescar e tomar banho. Hoje, desse curso d’água só restou um córrego, que enche apenas no inverno.

O recado que muitos da comunidade já entenderam é simples: “se eu não cuidar do meio ambiente, eu não vou ter minha economia”. A castanheira, apesar de ser uma árvore imensa, não possui raiz profunda, logo, ela morre com facilidade. As 46 famílias da região percebem esse desequilíbrio com as castanhas que já estão morrendo no espaço que eles chamam de “Castanhais do Avanço”, um local próximo à comunidade, de uso coletivo das famílias.

A Natureza deixa claro, seja pelas experiências das comunidades extrativistas amazônicas ou pelo artigo que projeta o futuro das 18 espécies de plantas da região, que é necessário que mais unidades de conservação sejam criadas. Segundo o estudo: “o governo brasileiro precisa desenvolver medidas viáveis que mitiguem os impactos que as mudanças climáticas representarão para as famílias extrativistas. Criar UCs na Amazônia Central e proteger as existentes são algumas ações urgentes para preservar o banco de genes das espécies”.

Outro ponto fundamental é o levantamento do perfil das populações extrativistas e as quantidades de extrações de determinada espécie utilizadas por elas. Com dados mais concretos em mãos, o artigo afirma que será mais fácil indicar as áreas que requerem intervenção governamental mais imediata e classificá-las em termos de vulnerabilidade às mudanças climáticas.

Por fim, os pesquisadores pontuam que o Estado brasileiro deve descentralizar a gestão das UCs com base na realidade das populações extrativistas. Se a gestão das RESEXs for realizada de forma participativa e cooperativa entre Estado e comunidades locais, erros associados à ineficiência dos órgãos governamentais na promoção da gestão sustentável poderão ser evitados.

Já na realidade atual da ASMIPPS, o grupo busca melhorar as condições locais para não só preservar a atividade da castanha, mas torná-la mais rentável. Em 2020, a associação foi contemplada com recursos para o projeto Castanheira, que trouxe a instalação de uma micro usina de beneficiamento de castanha para a comunidade. Por conta da pandemia, as reuniões tiveram que ser paradas, mas a ideia é que, por meio de oficinas, o grupo passe por treinamento de manuseio do maquinário e planejamento de negócios. Segundo Dilva, a expectativa é que, com o projeto, “as pessoas observem como é importante a árvore, o meio ambiente, porque está tudo associado. A gente não pode dizer que a economia não depende do meio ambiente, uma coisa está ligada à outra”.

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