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Agrotóxicos no Brasil

Contaminação Institucionalizada: o Papel do Estado na Disseminação dos Agrotóxicos

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  • Juliana Aguilera
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Victoria Lobo

7 min. tempo de leitura

Desde a Revolução Verde, o governo brasileiro tem estimulado políticas públicas para o uso de agrotóxicos no campo. Após 60 anos, o resultado é uma isenção anual de quase R$ 34 bilhões e maior incidência de câncer em regiões de monocultura.

A partir da Revolução Verde, na década de 60, diferentes governos cumpriram uma série de políticas públicas que forçaram a “modernização do campo”. As consequências notamos hoje, nos diversos impactos sociais, ambientais e de saúde pública. Diversos estudos fortalecem a hipótese de que nos locais com maior produção de grãos e, portanto, maior uso de agrotóxicos, há também maior presença de câncer de mama, de colo de útero e próstata e de óbitos decorrentes destas doenças. Nessa conta também entram dados desatualizados, uma legislação ambiental que não acompanha as liberações dos petroquímicos e a sobrecarga do SUS (Sistema Único de Saúde). 

O Ibama compila a série histórica de comercialização dos agrotóxicos, de 2009 a 2020. No período estudado o valor duplicou, somando 6.09 milhões de toneladas dos chamados defensivos agrícolas comercializados, sendo as maiores classes herbicidas (59%), fungicidas (13%) e inseticidas (10%). Os estados que mais utilizaram agrotóxicos foram: Mato Grosso, com 1.06 milhões; São Paulo, 0.96 milhões; Paraná, 0.67 milhões; Rio Grande do Sul, 0.6 milhões e Goiás, 0.5 milhões. Em 2020, esses valores significaram 5.36 kg de veneno por brasileiro.  

Para especialistas, a utilização massiva de agrotóxicos no Brasil não pode ser analisada sem considerar o histórico latifundiário no país. Apesar dos pesticidas não serem aplicados apenas em grandes propriedades, a agricultura extensiva remete ao Brasil Colônia, com os membros da nobreza que receberam terras expropriadas dos indígenas. No Brasil Império, a Lei de Terras, promulgada em 1850, reforçou a concentração agrária. Já a Lei Eusébio de Queiroz dificultou  ainda mais a aquisição de terras pelos escravos recém-libertos. 

No Regime Militar, Castelo Branco acalmou os setores ruralistas perturbados com a possibilidade da Reforma Agrária, promulgando o Estatuto da Terra, aprovado através da Lei 4.503/64. A ação atendia aos interesses da Revolução Verde. Em 1965, foi criado o Sistema Nacional de Crédito Rural, que vinculava  o crédito agrícola à adoção do uso de agrotóxicos

Na década seguinte, o Programa Nacional de Defensivos Agrícolas proporcionou recursos para a criação de empresas nacionais e a instalação de transnacionais químicas. A presença das transnacionais, aliás, é uma tendência atual: em 2006, 85% do mercado brasileiro de agrotóxicos era dominado por seis empresas estrangeiras, entre elas: Bayer, Syngenta e Basf. Em 2020, o percentual continua na casa dos 80%. A expansão dos agrotóxicos acontece desde o marco regulatório de 1989, que facilitou o registro de centenas de substâncias, muitas proibidas em países chamados desenvolvidos.

Mais facilidade veio pelo decreto nº 991/93, que excluiu a necessidade de renovação de registro de agrotóxicos, assim como prazo de validade do registro. Em 1997, o governo Federal concedeu redução de 60% da alíquota de cobrança de ICMS (Imposto sobre Circulação de Mercadorias e Serviços) a todos os agrotóxicos. O convênio se estendeu até 2012 e, depois, até 2025. Já o decreto 5.630/05 isenta da cobrança de PIS/PASEP (Programa de Integração Social/Programa de Formação do patrimônio de Servidor) e de COFINS (Contribuição para o Financiamento da Seguridade Social) para os “defensivos agropecuários classificados na posição 38.08 da NCM (Nomenclatura Comum do Mercosul) e suas matérias-primas”. Entre os defensivos estão: acefato, 2,4D e glifosato

Foi com a criação das sementes geneticamente modificadas que o Brasil passou a utilizar mais químicos no campo e se tornou um grande exportador e o maior consumidor de agrotóxico do mundo, em 2008. A Lei da Biossegurança, sancionada em 2005, regulou a experimentação, cultivo, manipulação, comercialização e consumo das sementes transgênicas. Um dos principais  argumentos, na época, era de que a nova tecnologia levaria as lavouras a necessitar de menos agrotóxico. Mas o que aconteceu foi o inverso. 

A soja transgênica representa mais da metade dos transgênicos plantados no mundo. No Brasil, mais de 75% do cultivo pertence à Monsanto e é tolerante ao roundup, herbicida à base de glifosato. De 2003 a 2009, a produção de glifosato cresceu de 57,6 mil toneladas para 300 mil toneladas graças à soja transgênica. Nas regiões onde os agrotóxicos são amplamente utilizados, é possível observar o aumento do percentual de insegurança alimentar da população, tanto por conta da conversão da produção, de agricultura de subsistência para produção de commodities para serem vendidas no mercado internacional,  quanto por contaminar o restante das terras e alimentos que são produzido bem como por gerar evasão rural.

As isenções continuam nos anos seguintes: o decreto 6.006/06, que foi atualizado três vezes, resultando hoje no decreto 10.923/21, isenta a cobrança de IPI (Imposto sobre Produto Industrializados) de agrotóxicos fabricados a partir de ingredientes ativos, como o metamidofós e o endossulfam, banido em 2013. A TIPI (Tabela de Incidência do Imposto Sobre Produtos Industrializados) também traz alíquota zero para uma série de agrotóxicos – na seção VI, capítulos 28 a 38 -, entre eles: glifosato, acefato, atrazina e endossulfam, mesmo que este já não seja mais permitido. 

A falta de permissão, aliás, não é o suficiente para que o petroquímico não apareça em casos de contaminação de água e leite materno. São diversos os estudos disponíveis sobre a presença de agrotóxicos no leite materno, ou o aumento da incidência de câncer em regiões próximas a monoculturas, como em um caso estudado em Mato Grosso, em 2011. Pesquisadores da UFMT (Universidade Federal de Mato Grosso), em parceria com a Fundação Oswaldo Cruz, analisaram o sangue e urina de moradores de duas principais cidades produtoras de grãos no estado: Campo Verde e Lucas do Rio Verde. Além dessas amostras, o grupo também investigou poços artesianos, amostras de ar e água da chuva coletada em escolas públicas e leite materno. 

As amostras de água de poços apontou que 32% estavam contaminadas com resíduos de agrotóxicos, já da chuva, mais de 40%. No ar, era 11% com resíduos de endossulfam. O leite materno de 62 mulheres atendidas pelo Programa Saúde da Família, em Lucas do Rio Verde, tinham presença de agrotóxicos Em 100% das amostras foi encontrado pelo menos um tipo de veneno, já em 85% haviam de 2 a 6 tipos. Entre eles, o DDE, derivado do DDT, proibido pelo governo federal em 1998. 

Consequências

As consequências dessas políticas que transpassam governos são várias, mas é válido destacar duas: a perda de bilhões de reais aos cofres públicos e o aumento significativo de doenças. Em 2016, as vendas de agrotóxicos deveriam totalizar R$ 33,3 bilhões de ICMS, mas o valor pago ao governo foi de apenas R$ 1 bilhão. O que R$ 33,3 bilhões poderiam financiar? Por exemplo, mil vezes o que é pago pelo auxílio cesta básica no estado do Ceará. Atualmente, a política pública atende 150 mil famílias, com um cartão alimentação de R$ 200. 

Nem todos os estados brasileiros registram as vendas e consumos de agrotóxicos. O Ceará é um dos casos que peca na fiscalização – é também um dos estados que tem isenção máxima de ICMS, IPI, CONFINS e PIS/PASEP para atividades envolvendo agrotóxicos. Naiara Bittencourt, integrante da Campanha Permanente Contra os Agrotóxicos e Pela Vida, aponta como a isenção fiscal gera outros problemas, como o controle sobre o uso real dos químicos. “Um grupo de advogados estava justamente buscando dados sobre qual era o volume de agrotóxicos utilizados no Ceará e não encontraram”, explica, “eles foram na fonte do problema e é que o Ceará, como vários estados brasileiros, isenta esses agrotóxicos de ICMS”. Ou seja, sem cobrança, não havia também monitoramento. Naiara conta que, atualmente, eles movem uma ADI (Ação Direta de Inconstitucionalidade) contra as normas que estabelecem a redução dos impostos para os agrotóxicos. 

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Existe, no Brasil, diversos sistemas de notificação e registro que sistematizam dados sobre intoxicação provocada por agrotóxicos, sendo os dois mais importantes: o Sinitox (Sistema Nacional de Informações Tóxicas Farmacológicas), gerenciado pela Fiocruz, e o Sinan (Sistema de Informação de Agravos de Notificação), gerenciado pelo Ministério da Saúde. Mas o livro Agrotóxicos no Brasil – um guia para ação em defesa da vida aponta três problemas sobre os sistemas: eles são dispersos e geram dificuldade para a análise de dados sobre intoxicação; há sistemas cujos dados se sobrepõem, o que os torna mais frágeis e há uma subnotificação generalizada. 

Sem a mensuração correta dos dados, também não há a mensuração correta dos impactos e exposição sofrida pela população. O pesquisador e professor da UFMT (Universidade Federal do Mato Grosso), Wanderlei Pignati, afirma que a proporção é de, a cada caso notificado, 50 não o são. “De 2010 a 2019, os dados do Sinan mostram que a intoxicação agrícola passou de 2.989 para 5.644. Isso impacta muito na saúde pública”, afirma. Pelos números, que possuem um atraso de 3 anos, podemos considerar que, a cada 96 minutos, uma pessoa é intoxicada por agrotóxicos no Brasil. 

No Mato Grosso existem três grandes hospitais do câncer, dois na capital, um no interior, mas, para o pesquisador, esse número vai precisar crescer em breve. “As regiões de Sinop, Rondonópolis, Diamantino (que possui produção de algodão) e Araguaia, se destacam na produção de grãos e na má formação congênita, câncer infanto-juvenil e intoxicação aguda. Em algumas regiões, a incidência é o dobro do que em outras”, aponta. 

O artigo Uso de Agrotóxicos e Mortalidade por Câncer em Regiões de Monoculturas, publicado em 2020, investigou a distribuição espacial das áreas plantadas de lavouras e as taxas de mortalidade de alguns tipos de câncer: mama, colo de útero e próstata, nos quatro estados que mais consomem agrotóxicos do país: Mato Grosso, Paraná, Rio Grande do Sul e São Paulo. O estudo analisou dados de 1996 a 2016 e concluiu que a população brasileira se encontra em situação de vulnerabilidade pelo modelo agroexportador adotado na economia. 

Na amostra, foram selecionadas cidades referência em produção de algodão, cana-de-açúcar, milho e soja, que correspondem a mais de 70% da área plantada no país. Foram escolhidos para análise agrotóxicos reconhecidos como DE (Disruptores Endócrinos), como: atrazina, acefato, 2,4D, glifosato, endossulfam e metolacloro. O resultado pode ser visto no infográfico a seguir: 

Uso de agrotóxicos e mortalidade por câncer em regiões de monoculturas

Estados Taxa de Mortalidade por câncer Concentração de agrotóxicos disruptores endócrinos
Mato Grosso Maior taxa de mortalidade para todos os tipos de câncer analisados Dos 50 agrotóxicos analisados, 20 atuam como DE, agentes mutagênicos e teratogênicos
Parana Houve aumento da taxa de mortalidade para todos os tipos de câncer a partir de 2012. Maior concentração no norte e sudoeste Maior concentração no norte e sudoeste, com taxas moderadas e elevadas de agrotóxicos DE
Rio Grande do Sul Maiores concentrações de taxas de mortalidades no oeste e nordeste do estado Regiões com uso moderado e alto de agrotóxicos DE
São Paulo Maior taxa de todos os tipos de câncer Áreas com menor consumo de agrotóxicos são as que tiveram menor concentração das doenças
Fonte: Lidiane Dutra et. – Uso de agrotóxicos e mortalidade por câncer em regiões de monoculturas, 2020

Como o livro Desastres sócio-sanitário-ambientais do agronegócio e resistências agroecológicas no Brasil sentencia: “o processo de produção do agronegócio atua na determinação social da saúde-doença-danos ambientais […] Trata-se de uma questão histórico-crítica relativa a um processo de desenvolvimento de situações de riscos, vulnerabilidades, acidentes e danos ambientais com efeitos cumulativos das formas agressivas de interrelações humanas com a Natureza. Elas estão na origem de muitas formas de adoecimento e morte das populações, dos desequilíbrios ambientais, sociais e sanitários que engendram as mais diversas pandemias, desastres ambientais, insegurança alimentar, fome, acidentes de trabalho, contaminação das águas e dos alimentos e várias doenças infecciosas”. 

O uso de agrotóxicos na agricultura brasileira deve ser considerado um problema de saúde pública. Quando analisado de perto, desprovido dos auxílios e subsídios estatais, o agronegócio não teria a hegemonia que possui, pois como mostram os dados, a agricultura extensiva dependente de sementes geneticamente modificadas e petroquímicos apresenta resultados cada vez piores na relação entre produtividade e custo de produção. 

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