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Respire Fundo: a Economia Circular Não Salvará o Mundo

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  • Marina Colerato
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Economia circular é a nova pauta do momento. Está em Davos e está na agenda de grandes corporações e empresas. O ano mal começou e já fomos bombardeados pelo tema - na moda e além.

O acordo proposto pela Global Fashion Agenda, para acelar a transição para uma economia circular até 2020, foi assinado por 64 empresas responsáveis por representar 7.5% do mercado de moda global e está sendo compartilhado com grande entusiasmo por quem debate sustentabilidade. O “Defasio de Design Circular (Circular Design Challenge)” da Ellen McCarthur Foundation, para uma nova economia do plástico, distribuiu 2 milhões de dólares em prêmios. O Instituto C&A está disponibilizando 1.5 milhões de euros para projetos capazes de incorporar a economia circular de maneira sistêmica na moda. Tudo isso nos primeiros 30 dias do ano.

Mas respire fundo. Ao contrário do que parece, a economia circular não salvará o mundo dos problemas ambientais e sociais que estamos enfrentando e enfrentaremos com cada vez mais severidade nas próximas décadas.

Apesar da economia circular ser uma parte importante rumo à sustentabilidade, e nós definitivamente precisamos vê-la em ação, ela está sendo posta como uma solução pragmática e quase mágica para o caos ambiental já em curso sem tocar no cerne do problema: o consumismo e um modelo econômico baseado em crescimento contínuo num planeta de recursos finitos.

Quando todas as discussões que assumem a importância de repensar os próprios fundamentos da economia são rapidamente taxadas como “ideológicas” para justamente serem colocadas de lado, a forma como estamos, sem cautela, propondo a economia circular só garante que as coisas continuem exatamente como estão: por exemplo, CEOs de empresas de moda ganhando em quatro dias o que uma costureira ganha a vida toda. Não é coincidência, então, que o papo da economia circular esteja sendo tão bem aceito pelas corporações.

Podemos nós alcançar sustentabilidade sem tocar nas estruturas de poder que nos trouxerem exatamente à insustentabilidade? Não podemos. Como Micha Narberhaus, c0-fundador da Smart CSOs Lab, argumenta em seu artigo para o The Guardian, resolver nossa crise ecológica significa diluir o poder das corporações globais – não dar mais força a elas. Narberhaus dá o exemplo proposto pelo arquiteto e pensador Walter Stahel, que sugere trocar a tributação do trabalho por tributação de recursos não-renováveis como forma de garantir menor efeito rebote do clima e uma solução para o desemprego estrutural. “Mas como as grandes empresas desconfiam dos novos impostos e do aumento dos custos de materiais, essa abordagem não é encorajada pelos principais defensores da economia circular”, lembra ele.

Talvez o mais importante nessa discussão, e o menos falado, seja o fato que, de forma igualmente pragmática, já está provado que se economia circular continuar sendo adotada de maneira a agradar executivos, acionistas e CEOs, não conseguiremos nem mitigar, nem reverter os danos da economia de lucro máximo – muito menos redistribuir renda e poder.

Eficiência de materiais leva a um maior consumo dos mesmos. 

A economia circular sofre do mesmo problema da eficiência energética: todas as economias propostas, sejam de matérias-primas, sejam de energia, vão ralo abaixo porque nós simplesmente passamos a usar mais desses recursos ao passo que eles se tornam mais eficientes. Um estudo recente apontado por Narberhaus conclui que a economia circular pode aumentar a produção global, eliminando parcial ou integralmente seus benefícios.

Em seu livro “Greenwashed: Why We Can’t Buy Our Way to a Green Planet” (sem tradução para o português), a autora Kendra Pierre-Louis dá diversos exemplos capazes de comprovar que o aumento da eficiência no uso de recursos naturais ao longo dos anos tem levado ao aumento do consumo, não o contrário. Isso porque o uso eficiente dos recursos e materiais torna os produtos mais baratos e mais apelativos para o consumo.

O aumento da eficiência no uso de recursos naturais ao longo dos anos tem levado ao aumento do consumo, não o contrário.

É preciso considerar também os impactos inerentes à manutenção das matérias-primas dentro da economia circular – o uso de energia e recursos para transporte e reciclagem, por exemplo, não é nulo. Todos esses fatores somandos apresentam um efeito rebote: enquanto o impacto por-unidade é menor, a soma geral é prejudicada pelo aumento do consumismo e até mesmo permanência das taxas de consumo atuais se expandindo para mercados emergentes. Essas análises mostram a necessidade de pensarmos mais sobre usar menos recursos e menos sobre tornar seus usos cada vez mais eficientes.

Economia de serviços e dependência das corporações

Serviços são uma excelente maneira de tornar a compra (e consequentemente a posse e o pouco uso dos produtos) obsoleta. A ideia é diminuir produção de bens para compartilhar o uso dos já existentes, economizando recursos naturais. É uma alternativa possível e interessante, principalmente se olhamos para a estratégia da economia da eficiência, onde, como explica Sara Arnold em seu artigo para o Business of Fashion (paywall), os consumidores pagam apenas pelo valor que extraem de um bem (o desempenho) à medida que o utilizam, incentivando as empresas a se reorientarem sobre os benefícios que o cliente realmente deseja.

Mas essa lógica é perigosa quando os serviços propostos são controlados novamente por… grandes corporações. Pense no Uber, Google, Facebook e AirBnB. São empresas de serviços com uma quantidade significativa de poder e de problemas. Elas mantêm promessas falhas de auto-regulamentação, escapam da legislação vigente, transformam trabalho precário em prática comum e se tornam cada vez mais difíceis de nos permitir nos ver livres delas.

Outra questão levantada por quem está pensando economia de serviços e economia compartilhada onde grandes corporações controlam o mercado, o preço desses serviços podem chegar a cifras inacessíveis para grande parte da população. Na visão de muitos, a dependência dos serviços pode significar perda da atual autonomia permitida pela posse. 

Fechar o ciclo está longe de ser realmente possível

A economia circular é um sonho impossível a curto e médio prazo. Se até metais preciosos, como o cobre e ouro de aparelhos eletrônicos, são descartados por conta de um sistema falho, empresas descomprometidas e legislações que beneficiam o uso de matérias-primas virgens, o que podemos esperar de materiais têxteis cuja a única possibilidade escalonável de reciclagem é a transformação em produtos de menor valor, como cobertores para doação e estofamento de carros?

Hoje, a possibilidade de transformar uma peça de roupa em uma nova peça de roupa por meio da reciclagem, usando apenas têxteis reciclados, é praticamente nula. A vasta gama de fibras e a própria complexidade da construção dos tecidos, com suas misturas de matérias-primas, tornam o cenário da reciclagem de têxteis extremamente desafiador e caro. O que acontece com as roupas teoricamente sendo reinseridas no ciclo, como propõe o programa de logística reversa da H&M, é despejar roupas usadas num mercado de segunda-mão já sem capacidade de absorvê-las.

Sustentabilidade é também sobre pessoas

O debate da economia circular deixa de fora outras causas da crise ambiental, que vai muito além do mau uso dos recursos naturais. Não é raro ver empresas se empenhando em colocar metas para a economia circular, mas com nenhuma prática para promoção da igualdade dentro da própria empresa. Igualdade de gênero e raça não são assuntos primordiais, assim como políticas para imigrantes ou revisão na forma de distribuição de lucros e bônus não fazem parte das agendas dos CEOs.

A economia circular precisa ser vista, entendida e proposta como parte de uma agenda ampla ou ela falhará miseravelmente em suas promessas. Como Narberhaus brilhantemente coloca, “a economia circular precisa fazer parte de um esforço maior para enfrentar o crescimento econômico, o consumismo desnecessário e as estruturas de poder antidemocráticas na economia global. Precisa ser orientada para as necessidades reais de todas as pessoas, em vez do consumo excessivo de alguns, e ser apoiada por mecanismos mais cooperativos e não controlados por um pequeno número de empresas poderosas”.

Mais uma vez, eu não gosto de ser a pessoa trazendo as más notícias, mas se não repensarmos o sistema, não veremos sustentabilidade. Apenas mais do mesmo, só que pintado de verde.

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