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Por Meio do Resgate de Saberes Ancestrais, Artesãs Geram Renda e Fortalecem Mulheres em Salvador

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  • Juliana Aguilera
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Victória Lobo

7 min. tempo de leitura

O bairro de Itapuã, em Salvador, é descrito como “uma cidade dentro de uma cidade”. Segundo artesãs locais, a comunidade é constituída por diversas identidades mas, como em muitos lugares do Brasil, a história e cultura local se perderam entre as gerações.

Para resgatar tais saberes ancestrais, a artesã, pedagoga e comunicóloga Rita Capotira idealizou o Projeto Memória Viva de Itapuã, focado na preservação das memórias femininas do bairro. Com a pandemia e a necessidade do distanciamento social, o projeto seguiu de forma remota, agora ensinando artesãs de todas as idades a trabalhar suas marcas nas redes sociais. Por meio dessa tecnologia, o grupo segue fortalecendo suas raízes culturais e expandindo essa fórmula para outras regiões.

A ideia surgiu em 2018, após o Fórum Social Mundial, no qual a artesã participou com duas rodas de conversas. “Saímos com o compromisso de voltar para nossas comunidades e desenvolver projetos ligados à preservação da memória”, relata. Como a presença feminina no território é ainda muito forte, Rita decidiu vincular a questão à atividade de ganho, como a venda de quitutes, iguarias da região e artesanato. Juntou amigas que trabalham em tais ramos – que moram em Itapuã há muito tempo e conhecem sua vivência – e contou sobre o projeto. A ideia é que, através de atividades como oficinas, feiras e rodas de conversa, as memórias ancestrais do local fossem sendo reativadas e revividas.

A iniciativa faz frente ao apagamento cultural reproduzido em diversos locais do país. Rita exemplifica dois espaços que foram descaracterizados com o tempo: a orla do bairro e a Lagoa do Abaeté. “Quando a prefeitura retirou as barracas de praia que existiam aqui, muito da culinária local se perdeu”, conta ela, “as mulheres que produziam algumas iguarias passaram a vender salgadinhos e pastel”. Já a lagoa, espaço que sofre alta degradação ambiental, foi lugar onde mulheres se reuniam para lavar roupas, cantar e vender alimentos nativos do bairro. Elas também foram retiradas dali, assim como o espaço de vendas, que foram, novamente, substituídos por outras barracas de comidas genéricas. “No projeto, a gente propõe que se retome esse lugar”, afirma.

Quando pensamos em locais históricos em Salvador, a primeira referência que temos é o Centro Histórico, com o Largo do Pelourinho, o Elevador Lacerda e o Mercado Modelo. Mas a cidade, que foi a primeira sede da administração colonial portuguesa do Brasil, concentra história e cultura em diversos locais. A exemplo de Itapuã: a região é importante pela pesca, foi porto clandestino de pessoas escravizadas, palco da Revolta dos Malês e também abrigou um grande quilombo. História ali é o que não falta. Mas a população local não tem noção dessa herança cultural. Rita conta que um dos motivos pelos quais ela escolheu trabalhar com mulheres está na percepção de Rita sobre as desigualdades sociais e as expectativas postas em cima das mulheres, como cuidar dos filhos aos vizinhos, amigos dos filhos e filhos de amigas.

Outra cultura apagada do bairro que também soma ao projeto para seu fortalecimento é a Colônia de pescadores. “A Colônia é um local bem acessível, é um espaço central, na orla, bem propício para que as atividades aconteçam”, relata Juliana Souza, professora e artesã, dona da loja JujuBlack Moda Afro. Antes da pandemia, o local possibilitou que o projeto fizesse eventos, reuniões e capacitações. “Os saberes ancestrais deles só enriquecem nosso trabalho”, reforça Rita.

Um projeto em quatro etapas

O projeto experimental, que Rita afirma ser parte da sua tese de mestrado, é dividido em quatro partes. Primeiro, o acolhimento, explicação da proposta; depois, as oficinas, o trabalho de reconto da história do território; em terceiro, está a ativação da memória, a construção de feiras com as mulheres e de alguns grupos de Whatsapp – ferramenta que está sendo essencial durante a pandemia. E a quarta parte acontece concomitante à terceira, que é a avaliação e incentivo de criação de coletivos, para que as mulheres continuem com tudo aquilo que aprenderam ali.

Criando essa movimentação, Rita não só fortalece a sororidade do grupo, mas também cria um trabalho em rede que possibilita ganhos para quem depende totalmente do trabalho de artesã.

Para Camila Matos, a feira é descrita como “uma forma de esperançar” e o projeto “um oceano de significado”. Camila trabalha com painel, suporte de planta, pantufas, bolsas de macramê, pochetes, cases e mochilas. Com o início da pandemia, ela se viu desempregada e a mãe foi afastada do serviço por conta da saúde, e foi nessa brecha que ambas decidiram abrir a loja de trabalhos manuais Pand’Art Boutique. “Somos mulheres trabalhando para atingir outras mulheres”, conta. Camila entrou para o grupo por convite de uma outra amiga artesã, Márcia Mascarenhas, que trabalha com costura criativa e artesanato.

Dona da loja Bela Chita, Marcia produz acessórios e transforma objetos que iriam para o lixo em decoração, como retalhos, CDs e vinil. “Através do coletivo, iremos resgatar e atrair a comunidade a valorizar e participar desse projeto, com admiração e respeito pela nossa história”, reflete, “a juventude precisa saber o quanto ela é linda”. Já Juliana fala do trabalho feito por Rita no bairro: “ela é uma personalidade muito importante aqui em Itapuã. Ela tem acesso às pessoas que fazem a gente ter acesso a esse meio. Se vendêssemos um bolo na porta de casa, talvez não teríamos tanto quanto quando saímos para os espaços que ela promove aqui”.

Rita explica que a feira foi pensada para a mulher que não tem condição de participar das grandes feiras de artesanato e culinária da cidade. “Primeiro, ela tem que pegar não sei quantos transportes para chegar naquele local, porque ela mora no subúrbio. Ela também não tem dinheiro para pagar sua participação e alimentação nessas feiras. Então, trazer os eventos para dentro da comunidade ajuda a girar a economia local e mostrar que ali tem coisas tão boas quanto num shopping, no centro da cidade”, afirma.

Quando a tecnologia reforça os saberes ancestrais

O ano de 2020 para as artesãs, assim como para muitos, foi difícil. As atividades passaram para o online e foi aí que Rita percebeu a dificuldade de compreensão do espaço digital de muitas participantes do projeto. “Elas não sabiam lidar com o Instagram, com redes sociais, nada disso”, explica, “muitas vivem do artesanato e se viram da noite pro dia sem rendimento nenhum”. A saída foi fazer campanhas de arrecadação de alimentos e materiais de higiene e trabalhar, via Whatsapp, posicionamento no Instagram para mulheres de comunidades periféricas e tradicionais – a formação foi para além do bairro de Itapuã.

A artesã montou e-book e vídeo aulas para ajudar as mulheres a criarem suas redes sociais e a venderem nesses espaços. Rita reforça que essa situação evidencia o quanto a comunidade está à margem da sociedade. “Não tínhamos acesso à internet e acabamos desenvolvendo várias estratégias para sobreviver a esse movimento”, explica. Uma dessas estratégias foi o apoio comunitário, que fez as mulheres se ajudarem mutuamente, desde dividir contas de luz à ajudar na formação das redes sociais.

Durante a pandemia, Rita tem aproveitado também para colocar todas essas experiências em um e-book. “Eu pretendo disponibilizar a partir de março, para quem quiser. Porque a ideia é multiplicar. Um saber que fica só para mim ou na prateleira de uma faculdade não tem utilidade nenhuma para a comunidade”, reforça.

Um saber que fica só para mim ou na prateleira de uma faculdade não tem utilidade nenhuma para a comunidade”

Rita Capotira

A esperança é que, no futuro, existam mais projetos voltados à consciência da história de Itapuã e uma ocupação mais incisiva desse espaço que, segundo Rita, é deles por direito. O projeto Memória Viva de Itapuã gerou o Coletivo Feminino Aldeia Itapuã e, agora, o coletivo está em transição para associação. O grupo também está com uma petição para a criação de um memorial às destas mulheres. A ideia é que o memorial seja um espaço no qual visitantes conheçam as histórias das mulheres de Itapuã e comprem o artesanato e produtos da culinária local. “Salvador tem história que não está só ali no Centro Histórico. São histórias do povo negro, das comunidades, que precisam ser visibilizadas”, afirma.

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