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‘Boi de Piranha’: Servidores Contam Sobre as Ameaças e o Sufocamento da Fiscalização dos Órgãos Ambientais

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  • Juliana Aguilera
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Victória Lobo

4 min. tempo de leitura

O saldo do desmatamento da Amazônia nos primeiros 12 dias de março foi de 40.84 km², ou 40 campos de futebol, segundo o sistema de alerta DETER, do INPE. Para se ter uma ideia desse número, o mês de fevereiro de 2021 registrou 122,8 km², quase ⅓ desse valor. O número de fevereiro, apesar de menor do que o ano passado, é 40% maior do que janeiro.

Ainda sim, o Governo Bolsonaro endossa fala de que está lutando contra o desmatamento ilegal na Amazônia. O que os servidores dos órgãos ambientais nos relataram, porém, são ameaças e sufocamento das fiscalizações. Denis Rivas, vice-presidente da Ascema e servidor do ICMBio, descreve como “boi de piranha” a sensação da categoria ao se subordinar aos militares nas ações de fiscalização.

A longa jornada de desmonte do Ministério do Meio Ambiente e seus órgãos vinculados já foi relatada aqui no Modefica. Inclusive pensando em pós-pandemia. A todo momento vemos um especialista ambiental ou um militar – que foi posto no seu lugar – sendo exonerado de algum cargo de chefia. É o caso do ex-superintendente do Ibama em Mato Grosso do Sul, o coronel da reserva do Exército Luiz Carlos Marchetti, que deixou o cargo no final de fevereiro. Ele denunciou, ao UOL, que a política está mal administrada e que os autos de infração emitidos pelo Ibama no estado desde outubro de 2019 estão parados. A afirmação se confirma pelos dados abertos do órgão: somente em Altamira (PA), constatamos 220 autuações de março de 2020 a março de 2021, todas com status “Lavrado” ou “Para homologação/prazo de defesa”, ou seja, ainda sem julgamento.

Altamira foi a cidade mais afetada pelo desmatamento entre agosto de 2019 e julho de 2020, com 798,2 km² (ou 4,2 mil Maracanãs). O valor das multas no município soma R$ 256,6 milhões – cerca de 1/7 do orçamento do Ministério do Meio Ambiente em 2021. Mas o cenário parecia outro na reunião do Banco Interamericano de Desenvolvimento (BID), no qual o Bolsonaro participou no último dia 16. Em seu pronunciamento, o presidente falou em desenvolvimento sustentável, o satélite Amazônia 1 – lançado em fevereiro – e sobre a fiscalização de madeireiras ilegais na região Norte. Restam dúvidas, porém, sobre o quão útil o satélite será, já que, por terra, na mão dos militares, o serviço está estagnado.

Inércia e intimidações

Denis explica como se dá na prática o que chamamos de “desmonte ambiental”: integrante da coordenação dos planos de manejo do programa de teletrabalho do ICMBio, suspenso em 2019 apesar de apresentar resultados positivos. Denis conta que chegou a trabalhar com cerca de 10 planos de manejo, mas, em especial, estava envolvido com a elaboração do manejo do Parque Nacional do Pico da Neblina, no norte do Amazonas. “Esse plano não foi aprovado pelo Ministério do Meio Ambiente até hoje, apesar de estar concluído tecnicamente já a quase um ano”, afirma, “ele contém estratégias efetivas para acabar com o garimpo de ouro, que está descontrolado (na região). Não tem nada que justifique a suspensão desse programa, a não ser, realmente, a retaliação aos servidores”.

A substituição de servidores com longos anos de atuação na região e especialistas na área ambiental por militares também é vista como uma forma de inativar o serviço dos órgãos e intimidá-los. Denis define a estratégia como um equívoco: “os militares não têm essas experiências e seguem as ordens tanto do ministro (Ricardo Salles) quanto do Presidente, que são de não combater, de fato, onde o crime está em curso”. Ele ainda completa que o local onde o crime e garimpo acontece é evitado pelos militares. “A diretriz é que não entrem em choque com os criminosos que estão praticando essas ações. Sobrou para o exército levantar o pátio de madeireira, que é onde o crime já aconteceu”, explica.

A intimidação também acontece por ameaças veladas, que Denis diz não serem “tão veladas assim”, como as afirmações dos militares sobre serem policiais e saberem o que os servidores fazem e falam. De fato, a ameaça aos funcionários de órgãos ambientais é destacada como uma dos principais resultados encontrados pelo relatório Mapeamento dos Retrocessos de Transparência e Participação Social na Política Ambiental Brasileira feito pelo Imaflora, ISA (Instituto Socioambiental) e Artigo 19.

Segundo o documento, em março de 2020, a Portaria nº 560/2020 oficializou que as demandas da imprensa sobre Ibama e ICMBio fossem centralizadas no Ministério do Meio Ambiente. Já em maio, a mordaça se estendeu aos servidores por meio da Nota Técnica nº 1/2020 da Comissão de Ética do órgão, coibindo que os funcionários se manifestassem publicamente de maneira contrária ao Governo Federal em suas redes sociais.

Os militares não têm essas experiências e seguem as ordens tanto do ministro quanto do Presidente, que são de não combater, de fato, onde o crime está em curso.

Denis Rivas

A censura é identificada em três frentes: (i) a intimidação aos servidores, (ii) ao retrocesso de participação social nas políticas socioambientais – como a extinção de colegiados voltados à inclusão da sociedade civil na tomada de decisão e redefinição de regras que dificultam sua atuação -, e (iii) apagões em bases de dados ambientais. Segundo o documento, “dos 10 órgãos federais que gerenciam bases de dados relevantes para as políticas ambientais, apenas 3 cumprem atualmente o requisito legal de possuir Planos de Dados Abertos vigentes em 2020. Trata-se de uma diminuição de 70% em relação à 2019”. Denis também complementa com o “apagão” a setores inteiros do Ministério do Meio Ambiente, como a Secretaria de Mudanças Climáticas e Florestas e todos os programas de trabalho relacionados a estes setores.

Pontos de ação

Denis não disfarça seu pessimismo com a atual situação ambiental brasileira. A mudança não virá apenas com a saída de Ricardo Salles, que ele classifica como “ventrículo das ideias de Bolsonaro”, mas sim com o afastamento do próprio presidente. O momento de pandemia também toma à frente da atenção da sociedade civil, que está sendo afetada diretamente, enquanto “os temas ambientais, as pessoas têm dificuldade em perceber”. A ocupação das ruas também se torna uma decisão delicada, enquanto as notícias falsas seguem ocorrendo a todo vapor nos grupos de WhatsApp.

O servidor também aponta a presença dos ruralistas no Poder Judiciário: “sentimos falta do Judiciário se posicionar com mais firmeza contra os desmandos e os ataques, o que demonstra que ele é comprometido com pautas mais atrasadas”. Mas a saída encontrada, no momento, é posta como lutar por qualquer “campanha pela vida”, como a vacinação.

Não vacinar pode causar impactos sociais e econômicos e quem diz é o próprio Ministério da Saúde, em 2019. O cenário de 50 anos atrás, quando não havia planos de vacinação nacional descritos pelo site, lembra muito os dias atuais: “apenas alguns estados ofereciam vacinas, o acesso era limitado, principalmente para as crianças. O impacto familiar, social, econômico e no sistema de saúde era grande”.

Apesar de enfraquecidas sem a coordenação e apoio do Governo Federal, as movimentações pelo clima têm acontecido a nível estadual. Em uma tentativa de articular parcerias e promover ações ambientais com o governo dos Estados Unidos, o grupo Governadores pelo Clima, que conta com 21 membros, está produzindo uma carta para ser enviada à Casa Branca para que o Brasil receba financiamento americano para promover iniciativas como: o combate ao desmatamento e preservação da floresta, redução de emissão de carbono, intensificação da transição energética para fontes renováveis e proteção dos povos indígenas. A carta deve ser enviada nas próximas semanas.

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