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Moda e Beleza Ajudam Criar Novas Narrativas Para Mulheres Trans e Travestis

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  • Juliana Aguilera
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Segundo o censo mais recente da Secretaria Municipal de Assistência e Desenvolvimento Social (SMADS) da Prefeitura de São Paulo, divulgado em 2015, a cidade possui aproximadamente 16 mil pessoas em situação de rua, sendo entre 5,3% a 8,9% da comunidade LGBT+. Essa margem incerta pode cobrir de 842 a 1415 pessoas. Mesmo com a aprovação da criminalização da homofobia, ainda há muito o que ser revisto em termos legais e sociais em um dos países que mais mata homosexuais e transsexuais no mundo.

Com o crescente medo das minorias em torno do atual cenário político – mais de 50% dos LGBT+ afirmam ter sofrido algum tipo de violência desde a eleição de 2018 – uma Casa no centro de São Paulo acolhe, desde 2015, mulheres transexuais e travestis em situação de rua. O Centro de Acolhida Especial Florescer (CAE Florescer) é o primeiro serviço com atendimento exclusivo para o público LGBT+ em São Paulo e assiste, atualmente, 30 mulheres.

O fundador, Alberto Silva, que já tinha experiência frequentando centros de acolhimento, notou a quantidade de mulheres trans e travestis que necessitavam de um lugar não-hostil para viverem. “Elas têm os direitos violados, todas passam por trajetórias de muitas rupturas”, conta, “e a Casa Florescer foi pensada como um espaço para que elas conseguissem ser elas de fato”. O principal foco da Casa é a saúde física e mental das moradoras.

Criada em parceria com a Prefeitura de São Paulo, por meio das Secretarias Municipais de Desenvolvimento Econômico e Trabalho e de Direitos Humanos e Cidadania, a ONG é lar, atualmente, para 26 mulheres transexuais e travestis em condição de rua e para quatro assistidas pelo programa Transcidadania. “Eu tenho 26 meninas que não são do Transcidadania, que não estão vinculadas em nenhum programa. Elas vieram diretamente da exclusão, da rua – e quando eu digo rua, é de estarem vivendo em moradias [do estado], não que estavam em uma calçada”, explicou ele.

Oportunidades e novos espaços

Na Casa, além de atendimento com assistente social e psicológica, elas dormem, comem e participam de oficinas de capacitação profissional, estimulam processos criativos e fomentam o empreendedorismo. Alberto articula uma rede de parceiros com objetivo de sempre dispor de aulas para as assistidas. Por vezes, eventuais parceiros tomam a iniciativa de colaborar com ações pontuais, em outros casos, ele mesmo busca serviços na região, como é o caso de alguns cursos que aconteceram em conjunto com o Senac.

As oficinas são uma ferramentas de transformação e oportunidade para essas mulheres se reconhecerem em outras realidades, antes entendidas como se não lhes pertencessem. “Eu não sou só um corpo, eu tenho uma identidade, uma história”, Alberto explica a mudança de postura e coloca a costura como exemplo. Aprender o ofício pode despertar desejos de aprofundar os conhecimentos, como iniciar um curso de modelagem. “Automaticamente, você desperta o desejo e fomenta o sonho de um universo diferente”, reflete.

Atividades ligadas ao universo da moda e beleza, como curso de maquiagem, moda e corte e costura, são bem populares na Casa, mas as oportunidades não se limitam ao tema. Aulas de tecnologia da informação, enfermagem – voltada à formação de cuidadores -, arteterapia, dança e yoga também já foram lecionadas para o grupo, dentro do próprio espaço ou nos locais definidos pelos parceiros. “O foco é que elas consigam acessar todos os serviços da região”, explica Alberto.

As oficinas são uma ferramentas de transformação e oportunidade para essas mulheres se reconhecerem em outras realidades, antes entendidas como se não lhes pertencessem.

A Casa Florescer fechou, no último dia três, o ciclo de mais uma oficina de moda: customização de roupas, em parceria com o Ateliê Transex. O curso, que teve duração de seis meses, foi encerrado com um evento no qual as participantes desfilaram com suas produções. O intuito da oficina foi apresentar, por meio de técnicas de upcycling, a possibilidade de ressignificar roupas que traduzissem suas identidades, sem a necessidade de comprar novas peças.

As aulas, lecionadas pelo estilista Alex Santos, aconteceram uma vez por semana, por duas horas, e trouxeram conhecimento da história da moda e de customização. “Eu ensinei sobre o universo da moda, porque elas não tinham acesso a essas informações, e sobre a valorização de peças que elas já tinham na Casa”, contou o estilista. Os tecidos utilizados vieram de roupas doadas e o processo de trazer suas identidades à tona por meio das roupas foi feito com o auxílio do estilista. “Elas aprendem a se vestir melhor, a valorizar seus corpos e a entender que elas podem usar as mesmas roupas que uma mulher cis1 cisgênero – indivíduo que se identifica com o seu gênero de nascença usaria. Muitas vezes, a sociedade cria esse esteriótipo de vulgaridade somente por elas serem transexuais e travestis”, aponta Alex. Nesse contexto, a oficina significa possibilidade de resgate de autoestima, de essência e de pertencimento ao universo da moda.

Moradora da Casa há seis meses, Mirela Gonzaga participou da oficina de customização de roupa e bolsa e também desfilou no evento de encerramento. “A roupa que eu fiz foi em um estilo muito roqueira. Usei pedraria, várias bijuterias e um vestido de napa curto, com uma meia calça toda trabalhada nas bijuterias. Eu decorei umas bolsas com pedrarias, é maravilhoso, tudo de bom”, detalhou ela animada. A experiência de desfilar também foi uma novidade para a assistida, que frisa a aceitação do público. “Eu me senti muito em casa porque tinham muitas pessoas humildes, simples. Não teve preconceito, todo mundo estava na mesma sintonia, na mesma língua”, afirma.

Mirela conta o interesse em aprender mais sobre costura e que não perde a oportunidade de participar das oficinas na Casa Florescer. Desde que entrou no local, já participou de aulas de desenho artístico e de dança. O próximo curso, que será de maquiagem, já deixa sua voz no telefone eufórica: ‘já me inscrevi. Não posso perder nenhum capítulo dessa novela”. Junto com o desfile, a Casa abriu espaço para a exposição de trabalhos realizados na oficina de artes plásticas. Alberto explica como a expressão artística trabalha identidade por meio das cores: “geralmente, diante de todo o contexto, as cores são mais escuras. Com o processo, começam a clarear um pouco, a ganhar movimento e colocar um pouco as suas emoções na tela”.

A participação nas oficinas vai de acordo com a vontade e disponibilidade da assistida. Algumas estudam no horário que as aulas acontecem, normalmente no período da tarde, outras trabalham. Alberto conta com orgulho uma parceria com o Senai possibilitou que uma das assistidas conquistasse uma vaga na marca Paula Raia. “Ela fez um curso de corte e costura e foi escolhida na seleção da Paula, que também ofereceu um curso de bordado para as mulheres que estão na Casa. A ideia [das oficinas] é sempre fomentar possibilidades”, ressaltou. Ao fazer parcerias com entidades públicas e privadas, Alberto busca desmistificar nesses espaços os preconceitos em torno do público transexual e travesti. Quando profissionais ou futuros profissionais entram em contato com as mulheres, eles passam por um processo de aproximação. “Eles podem se deparar com uma cliente trans, ou podem trabalhar com uma pessoa trans, e vão entender um pouco mais sobre suas histórias”, explica Alberto.

O trabalho de conscientização

Em um mundo ideal, a Casa Florescer teria não só o engajamento financeiro de mais colaboradores como também a aceitação e inclusão das mulheres transexuais e travestis em outros ambientes. A estigmatização da minoria é ainda muito forte. “Quando eu falo: ‘imagine uma pessoa travesti em situação de rua’, você já imagina uma pessoa drogada, com desequilíbrio mental muito grande”, reflete, “mas essa pessoa tem, de repente, um objetivo e também quer ter uma oportunidade. Quando ela ter essa oportunidade, ela agarra com muita força”. As oficinas tentam suavizar o grande obstáculo da baixa escolaridade e fazem florescer o desejo de estudar. É por isso que Alberto salienta a importância da parceria com iniciativas privadas.

Se contar apenas com o poder público, o serviço de assistência se resume a cama, banho e alimentação, mas outras necessidades se fazem presentes. Existem duas moradoras na Casa que são cadeirantes sendo, uma delas, idosa. “Você fica pensando ‘o que é ser idosa, cadeirante e estar nessa situação?’. Independente do recurso interno que temos, seria um caso específico de um lugar de idosos”, explica Alberto. Já quando uma oficina é lecionada, eles também precisam ir em busca dos materiais. Para a oficina de moda, por exemplo, foi preciso buscar parceiros que fornecessem os tecidos. “Devido ao rótulos de serem uma população T e estarem em situação de rua, muitas empresas ainda não conhecem suas histórias. É necessário desconstruir esse perfil marginalizado”, afirma.

Quando empresas realizam ações com a ONG, elas passam a fomentar esporte, lazer e saúde. Ao criar essas parcerias, o público da Casa Florescer também traz a reflexão para outros grupos e espaços, ensinando um pouco mais da narrativa e vivência da comunidade LGBT+. Mirela sente como se a Casa Florescer fosse sua própria Casa. O acolhimento, tanto pelo 17 funcionários que ali trabalham – entre psicóloga, assistente social, educadores – quanto pelas outras moradoras é diferente do que ela já vivenciou em outros espaços. “Eu fiquei em um albergue na Mooca (bairro de São Paulo) e sofri preconceito por ser trans. Aqui eles fazem pra gente o que muitos lugares não fazem”, relata. Com a oportunidade dos cursos, Mirela conta seus planos futuros: trabalhar no exterior com decoração de roupas, confeccionada com pedrarias.

As empresas precisam fazer o trabalho de inclusão de base e, socialmente falando, as pessoas precisam entender a narrativa do outro. Independente da história, existe ali uma identidade.

Alberto Silva

Das trinta assistidas pela Casa Florescer, atualmente apenas três possuem trabalho com carteira registrada. Alberto conta que, nos três anos e cinco meses de existência da Casa, passaram 288 mulheres e, deste grupo, 82 conseguiram emprego formal. A média de 28.4% é considerada muito boa quando se leva em conta a marginalização deste público. “As empresas precisam fazer o trabalho de inclusão de base”, reflete, “e socialmente falando, as pessoas precisam entender a narrativa do outro. Independente da história, existe ali uma identidade”. Apesar dos assuntos LGBT+ estarem avançando em passos mínimos na esfera política, Alberto afirma que o cenário político atual, conturbado do jeito que está, é o momento de mostrar de fato que estas pessoas existem e pertencem à sociedade.

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