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Consumir Menos Não é Uma Missão Simples Para as Mulheres

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Estou rodeada de várias mulheres tentando rever a lógica de consumo na qual operam há anos. Consumir menos, bem menos, só o necessário. Consumir de um jeito mais consciente e sustentável, olhando com cuidado para o próprio corpo, favorecendo o que é natural e prestando atenção no impacto social e ambiental dos atos de consumo. Eu sou uma delas. Há mais de 1 ano estou comprometida com o meu processo de tirar a atenção das coisas materiais e valorizar as pessoas e as experiências.

Desde o começo dessa jornada, esbarrei algumas vezes com uma fala de que a mudança é simples: “É só comprar menos e escolher melhor as marcas.”

Essa fala vinha de todos os lados. Família, namorado, amigas. De pessoas super bacanas envolvidas com consumo sustentável. Sofri um bocado até descobrir que não, o problema não estava só em mim. Para nós, mulheres, deixar de comprar e parar de acumular coisas não é uma mudança fácil.

Essa mudança não é só sobre gradualmente transformar nossos hábitos de compra. Não se resume a escolher outras marcas, preferir orgânicos, ler com mais atenção os rótulos. Se quisermos realmente consumir menos e melhor, precisamos entender o contexto econômico e cultural que nos empurra, todos os dias, em direção ao consumo.

Por que nós compramos demais?

“Mulheres são muito consumistas.”

“Você compra demais, gasta muito dinheiro com coisas inúteis.”

“Pra quê tanto produto de beleza?”

“Mais uma roupa nova?”

E por aí vai. Se não ouvimos essas frases com frequência, nos vemos dizendo para nós mesmas, ou para amigas. E é verdade. Em geral, compramos bem mais do que precisamos.

Segundo estudo conduzido pelo americano Michael Silverstein, as mulheres controlavam ou influenciavam, em 2102, 70% dos gastos de consumo feitos nos Estados Unidos, gerindo cerca de 5 trilhões de dólares. A pesquisa mostra que somos nós que compramos itens para a casa e os filhos, decidimos quando a família vai redecorar o apartamento ou trocar de carro. Os homens compram coisas mais caras, mas nós, mulheres, compramos mais. Sempre queremos novidades e influenciamos outras mulheres a comprar também.

Esse ano, no Brasil, nós também superamos os homens em compras na web: 67% das mulheres são consumidoras on-line, enquanto entre os homens esse número é de 65%.

Padrão de Beleza e Consumo: Duas Prisões Que Se Retroalimentam

Esses números contam uma história longa e muito mais complexa do que as falas que costumamos ouvir por aí. Quando falamos do nosso comportamento de consumo, não podemos ignorar o contexto cultural que coloca as mulheres, desde muito cedo, em uma corrida eterna pela aparência ideal.

Desde que nos entendemos por gente, somos ensinadas, de jeitos ora escancarados e ora sutis, que nosso maior atributo é a beleza. Que se formos bonitas, navegaremos melhor pelo mundo. Aprendemos também uma definição bem estreita de beleza. A mídia se encarrega de mostrar que existe uma beleza certa, um padrão a ser alcançado. Esse padrão que tomamos por referêncial norteador a vida toda é o da beleza ocidental responsável por estampar as capas das revistas: peso e estatura dentro de certos limites considerados “normais” e aceitáveis, pele branca, cabelos lisos, físico agradável ao olhar masculino, entre outras coisas.

As diferenças, os diversos tipos de corpos possíveis, não são retratados, abordados com frequência ou naturalidade. Crescemos então perseguindo o inalcançável para a grande maioria de nós: corpos que não são os nossos e nunca vão ser.

Fazer as mulheres acreditarem que devem e podem se encaixar no padrão de beleza vigente cria e estimula a reprodução infinita de prisões femininas nocivas que se perpetuam por gerações, ao mesmo tempo que alimenta devidamente uma indústria gigantesca de consumo desenfreado de produtos e serviços, que vão desde peças de fast fashion e cosméticos variados até sessões estéticas de congelamento de gordura e intervenções plásticas absurdas.

Nada que esteja em desacordo com a lógica capitalista de produtividade extrema e maximação dos lucros.

Em resumo, a lógica da prisão estética reforçada pelos meios de comunicação – que nos apontam, o tempo todo, que não somos magras, bonitas ou saudáveis o suficiente – aliada a uma solução em forma de produto, adquirível a um clique, faz com que nos tornemos presas fáceis.

A Solução Passa Por Uma Transformação Profunda

Na minha perspectiva, a transformação é bem mais profunda do que apenas parar de comprar, ou substituir algumas marcas por outras, mais conscientes.

Precisamos, antes de tudo, parar um pouco e olhar em volta. Notar as diferenças e entender que não existe só um tipo de corpo possível e correto. SE que seguir em uma corrida maluca para ter um corpo que não é o nosso só vai trazer ansiedade, obsessão e frustração constantes. Mais que isso: vai trazer doença ao invés de saúde.

Depois, precisamos encarar de frente o nosso corpo que a gente tem e cultivar um olhar constante de carinho para ele e para outros corpos fora do padrão. Praticar a auto-compaixão e acolher ao invés de criticar, julgar e lançar no grupo do whatsapp das amigas uma nova dieta do verão que promete enxugar 3kg de gordura em 5 dias.

Esse processo de verdadeira aceitação é intenso e contínuo, já que nossa aparência se transforma o tempo todo, com o passar dos anos: menstruamos, ficamos doentes, engravidamos, envelhecemos. Mas é o único modo de nos libertarmos de verdade.

Essa jornada também nos deixa mais atentas. Passamos a examinar com mais critério toda vez que alguém nos diz sobreque saiu um novo método para queimar gordura localizada, e a questionar o dermatologista quando ele nos dá uma receita infinita de cremes e loções caríssimas para prevenir marcas de expressão.

Passamos a olhar com menos ansiedade para tudo que tentam nos vender, porque sabemos que aquela montanha de coisas não é, necessariamente, a resposta para as nossas questões. Passamos a compreender e confiar mais no nosso corpo, nas respostas orgânicas, biológicas e pessoais, do que na indústria cosmética, na mídia tradicional e nos médicos. A partir daí, começamos também a cultivar uma relação mais protagonista e curiosa com as coisas que compramos e usamos.

Isso não significa negar tudo o que a ciência criou para nós, nem dar as costas para séculos de avanço tecnológico. Pelo contrário. Significa compreender o cenário, as opções que existem e fazer escolhas mais justas e conscientes. Justas conosco, com o nosso corpo, com as próximas gerações e conscientes por beneficiarem toda a cadeia produtiva.

Texto PorAnna Haddad

Anna é advogada, escritora, empreendedora e feminista. Estuda e produz conteúdo sobre temas como educação, colaboração, gênero e novos negócios. Fundou a plataforma de aprendizagem livre Cinese e a comunidade de empoderamento feminino Comum.

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