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Commodity do Desmatamento: Carne Exportada Tem Origem na Devastação da Amazônia

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  • Juliana Aguilera
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Com o intuito de relacionar a agropecuária ao desmatamento no Brasil, um novo relatório da base de dados Trase, feito em parceria com o Instituto de Meio Ambiente de Stockholm e a ONG Global Canopy, mapeou a origem e destinação de uma das maiores commodities brasileiras, a carne bovina, e como essa atividade promove a derrubada da floresta, extração de madeira, conflitos de terra e declínio na qualidade de vida das populações na Amazônia e Cerrado.

Segundo a base de dados, em ambas as regiões analisadas, dois terços das áreas desmatadas são destinadas à pastagem. A cada ano, cerca de 260 a 580 mil hectares de florestas – ou 260 a 580 mil campos de futebol – são perdidos para dar lugar à criação de gado. A destruição dos biomas também traz outros conflitos na região, como o deslocamento forçado de comunidades tradicionais, o trabalho escravo e conflitos fundiários. Erasmus Zu Ermagassen, pesquisador líder do projeto, chamou atenção para como a atividade pecuária também contribui para o colapso climático: “um quinto de todo o desmatamento para produção de commodities nos trópicos está vinculado à pecuária brasileira – apenas este setor, neste país. Somente a pecuária representa metade de todas as emissões de gases do efeito estufa na economia brasileira”.

Embora as informações divulgadas não sejam totalmente inéditas, o que há de novo é o mapeamento dos diversos atores presentes na cadeia de suprimentos. Como a rede produtiva da carne é bastante fragmentada, não é simples fazer uma vinculação direta do desmatamento a empresas e mercado consumidor. Além de detalhar o risco de desmatamento que cada ator impõe sob determinada região, o estudo também relaciona a commodity com o desenvolvimento das cidades que possuem fazendas de gado, cruza dados de desmatamento com os de presença de reservas indígenas, regiões de escassez de água e outras informações importantes para entender o impacto da pecuária por várias lentes.

Um quinto de todo o desmatamento para produção de commodities nos trópicos está vinculado à pecuária brasileira.

Algumas empresas, investidores e governos já reconheceram o valor das florestas e ecossistemas tropicais e firmaram compromissos públicos para garantir suprimentos livres de desmatamento em 2020. Mas como estes compradores irão manter esse posicionamento se não conseguem identificar onde a rede produtiva dos suprimentos começa ou termina? Ao fazer esse mapeamento, a Trase busca criar oportunidades para incentivar comércios mais sustentáveis, elucidando investidores, comerciantes, governos de países consumidores, o próprio governo brasileiro, organizações da sociedade civil e jornalistas – estes últimos que desempenham um papel vital de fiscalização no fortalecimento da responsabilidade das cadeias de suprimentos globais. É uma ferramenta essencial frente ao possível aumento das vendas do Mercosul para a União Europeia.

 

Metodologia

Para entender a responsabilidade dos importadores de carne no desmatamento brasileiro, a Trase mapeou as exportações brasileiras de carne bovina, gado vivo e restos não aproveitados de peças – como a cabeça e ossos – entre 2015 e 2017. Os dados cobrem desde a origem do animal (no pasto) até o destino da exportação. Todos os registros de movimentação de gado foram baixados de fontes estaduais e federais, como o Ministério da Agricultura, Pecuária e Abastecimento, Indea (Instituto de Defesa Agropecuária de Mato Grosso), Idaron (Agência de Defesa Sanitária Agrosilvopastoril do Estado de Rondônia) ou comprados de bancos de dados privados, tanto de empresas de inteligência comercial quanto de empresas responsáveis pelos repositórios governamentais.

Em 50,4% das exportações, foi possível computar a movimentação dos gados entre propriedades, incluindo fornecedores indiretos 1 propriedades que não vendem o boi diretamente para o matadouro, mas criam bezerros que são vendidos a outras fazendas que, posteriormente, vendem ao matadouro. . Entretanto, como consequência da fragmentação da rede de produção, em 49,2% das exportações, os registros das movimentações não estavam disponíveis, principalmente para abates ocorridos em matadouros dos municípios de São Paulo, Goiás e Rondônia. Isso quer dizer que não foi possível afirmar se a propriedade da qual o gado saiu para o matadouro realmente é a que o criou, ou se ele foi vendido de uma fazenda para outra.

Para confirmar a ligação da atividade agropecuária com a retirada de vegetação nativa, o grupo vinculou as informações das exportações com mapas anuais de expansão e desmatamento na Amazônia, Cerrado e Mata Atlântica. Para ser considerado terra desmatada para produção de gado, a Trase considerou as áreas que foram convertidas em pastagens dentro de um período de cinco anos. O banco de dados também traz o “risco de desmatamento”, que é igual as possíveis áreas que podem perder sua vegetação futuramente para a criação de pastagens. A obtenção do dado acontece ao cruzar dados históricos de diversas ações nas regiões mapeadas – como área de vegetação perdida, movimentação de cabeças de gado, vendas das fazendas.

Desmatamento em números

O Brasil tem mais gado do que gente. Segundo o IBGE, apesar do número de cabeças ter caído 0.7% na comparação 2018-2017, ainda possuímos o maior rebanho comercial do mundo, com cerca de 213,5 milhões de animais frente a uma população de 210,1 milhões de pessoas. São 2.5 milhões de fazendas de gado – ou quase 500 fazendas para cada município brasileiro. Os números também revelam como a atividade está concentrada na mão de poucos: apenas 142 empresas exportam a commodity para 150 países, numa representatividade de 7 a 9% do PIB brasileiro, o que significa R$ 18 bilhões a R$ 27 bilhões ao ano. Em 2017, foram 40 navios do tamanho do Titanic exportados de carne bovina, carga viva e restos não aproveitados, responsável por representar apenas 19% de toda a produção do país.

Somente nesta fatia das exportações, o agronegócio desmatou 210 mil hectares entre 2015 a 2017 – essa área é maior do que a cidade de São Paulo. Já o risco de desmatamento, caso as exportações se mantenham nesse volume, é de 66 a 75 mil hectares, sendo 51% nas áreas de vegetação amazônica e 47% no Cerrado, que compreendem os estados de Mato Grosso, Rondônia e Pará, principalmente. A emissão de CO2 na atmosfera foi estimada em 23 mega toneladas (439 titanics), sendo a grande maioria – aproximadamente 78% – identificado no bioma Amazônia. As cidades mais com mais emissões foram Porto Velho (RO), São Félix do Xingu e Altamira (PA). São Félix, aliás, registrou o maior número de queimadas em 2017 e no início de setembro deste ano.

Principais compradores

A China é atualmente a maior compradora de carne bovina brasileira respondendo por 38% de todas as exportações. Em 2017, só Hong Kong foi responsável por 22% desse total. As importações da ilha foram associadas a um risco de desmatamento por tonelada maior do que as importações da China continental – cerca de 27% de todo risco de desmatamento associados a exportação. A Trase conseguiu linkar a carne que entra em Hong Kong à produção de gado na Amazônia, o lugar mais sensível ao desmatamento, enquanto os produtos que vão para a China continental foram ligados a fazendas em São Paulo, Minas Gerais e Mato Grosso do Sul, onde o desmatamento ou já aconteceu ou se dá em outro ritmo.

É importante notar que nem sempre o maior comprador é responsável pelo maior risco da perda da vegetação. O valor varia com a região na qual a fazenda, a ponta inicial da cadeia, se encontra. A Rússia, por exemplo, foi o quarto maior importador da commodity em 2017, mas é o terceiro no ranking de risco de desmatamento. O país importou 208.622 toneladas (10 titanics) dos estados de Rondônia e Tocantins, em regiões que compreendem floresta amazônica e Mata Atlântica. Dessa forma, o risco de desmatamento calculado foi de 9.679 hectares, aproximadamente 7% da área da cidade de São Paulo.

Somente nesta fatia das exportações, o agronegócio desmatou 210 mil hectares entre 2015 a 2017 – essa área é maior do que a cidade de São Paulo. Já o risco de desmatamento, caso as exportações se mantenham nesse volume, é de 66 a 75 mil hectares, sendo 51% nas áreas de vegetação amazônica e 47% no Cerrado.

O terceiro maior importador foi o Egito, cujas carnes saíram da Amazônia e Cerrado, principalmente nos estados de Mato Grosso e Rondônia. O risco de desmatamento foi calculado em 10.047 hectares. Outros países do oriente médio compõe o Top 10 importadores, como Irã e Arábia Saudita. Na América do Sul, apenas o Chile aparece em 5º lugar, com 4.5% das vendas e, na Europa, Itália e Reino Unido aparecem com 2% e 1.8%, respectivamente. O Estados Unidos fica em 7º lugar, com 2.7%. A maioria da carne vendida ao país, que só compra o produto processado, vem do Mato Grosso, principalmente na região do Cerrado. O risco de desmatamento foi calculado em 800.5 hectares.

As Exportadoras

JBS S/A, Marfrig Global Foods, Minerva e Mataboi Alimentos LTDA foram as quatro principais responsáveis por essas exportações. Junto com suas subsidiárias, elas são linkadas ao risco de desmatamento de 150 mil hectares, ou o tamanho da cidade do Rio de Janeiro mais 300 km² – por pouco esse número se iguala ao tamanho da cidade de São Paulo.

A JBS aparece disparada no ranking de vendas dos quatro principais importadores: em 2017, a empresa vendeu 729 mil toneladas – ou 13 titanics -, quase o dobro da segunda colocada, a Marfrig, que exportou 316 mil toneladas. A JBS corresponde a uma fatia de 29% das vendas ao mercado internacional. Ela é também a maior empresa de carne embalada do mundo. Seu risco de desmatamento é acima da média, pois boa parte da commodity tem origem em estados da região amazônica, com matadouros operando em Mato Grosso, Rondônia, Pará e Acre. A Trase relaciona as exportações da empresa com mais de um terço do risco de desmatamento total. Ao todo, são 1.396 municípios produtores de gado, dos quais 47% estão ligados à atuação comercial da JBS.

A segunda na lista das grande exportadoras é a Marfrig Global Foods, que viu suas exportações aumentarem de 12% para 15% entre 2015-2017. A empresa foi associada a 10-15% do risco do total de desmatamento nesse período, fechando 2017 com 9.600 hectares em risco de desmatamento projetado para o ano subsequente. A cadeia produtiva ligada à exportadora compreende 1.232 municípios, presentes em áreas de Mata Atlântica e Cerrado.

Minerva foi a terceira maior exportadora de carne bovina em 2017, com 300 mil toneladas (5 titanics), que também viu suas vendas aumentarem em 3% em relação à 2016. A empresa faz negócios com 1.288 municípios, representa 15% das exportações e é associada a 15,5% do risco de desmatamento. O grande comprador da Minerva é o Irã, responsável por abocanhar 20% do volume total da companhia e garantir a compra do que é produzido em regiões com presença de vegetações da Mata Atlântica e Cerrado.

Cerca de dois terços das exportações de carne bovina são feitas pela JBS S/A, Marfrig Global Foods e Minerva, mas a quarta maior exportadora também merece destaque pelo aumento das vendas no penúltimo ano. A Mataboi Alimentos LTDA viu suas exportações aumentarem 67% de 2016 para 2017. Foram 130 toneladas (2.5 titanics) de carne bovina exportada principalmente para a China, que representa 41% do total das vendas da companhia. É o Cerrado brasileiro que fica sob ameaça para atender o volume produtivo da Mataboi.

Missão (quase) impossível

O relatório da Trase também aponta que os esforços para contenção do desmatamento têm se mostrado insuficientes: as três maiores exportadoras de carne se comprometeram, em 2009, por meio de uma TAC (Termos de Ajustamento de Conduta), a desenvolver mecanismos de controle de produtores indiretos na vegetação amazônica. Porém, o tratado assinado por elas não compreende o bioma Cerrado, de onde provém 45% a 54% do gado das empresas e cujos taxas de desmatamento bateram recordes de 2009 até hoje.

Paralelo a isto, a JBS foi penalizada em 2017 com uma multa de R$ 25 milhões por comprar gado de áreas desmatadas ilegalmente e ainda hoje segue comprando da mesma localidade. Quando questionada, a empresa chegou a admitir que não possui verificação sistemática dos seus fornecedores – resposta que reforça a necessidade de uma articulação para rastreamento da cadeia produtiva da carne e derivados.

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