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Documentário Revela Realidade Social de Toritama, a Capital do Jeans

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  • Marina Colerato
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Toritama está localizada no Agreste Setentrional de Pernambuco, a 164 km de Recife. O último levantamento do IBGE, feito em 2010, totalizou 35.554 habitantes. Como essa população (sobre)vive é o tema central do longa Estou Me Guardando Para Quando o Carnaval Chegar, do brasileiro Marcelo Gomes, que estreou nos cinemas na última quinta-feira (11). 

A cidade faz parte do pólo produtivo têxtil do Agreste junto com outras duas cidades maiores: Caruaru e Santa Cruz do Capibaribe. É responsável por, estima-se, 16% da produção do jeans no Brasil ou cerca de sessenta milhões de peças ao ano, num giro de R$ 450 milhões. Calças, shorts, saias, bermudas e macacões produzidos em Toritama abastecem o mercado nordestino, mas não se limitam a ele. Os itens confeccionados e beneficiados na cidade são distribuídos, por meio de  pequenos e médios varejistas, para todo o Brasil, além de cruzarem as fronteiras e alcançarem o mercado internacional. 

Depois da chegada do jeans, lá nos anos 80, uma cidade que era basicamente rural, vivendo de pequenas criações de gado e plantações de mandioca e feijão, pacata e onde as pessoas tinham tempo de sobra, se transformou num local onde não há mais tempo para nada a não ser trabalhar com o jeans. O filme mostra como cada pequena casa se transformou em pequenas facções, fabriquetas e lavanderias para beneficiamento do jeans. A calçada, antigamente o local onde idosos e crianças sentavam no balança para ver o tempo passar, permance ocupada, mas agora todo mundo tem uma peça de jeans para limpar na mão. Quando adentra a zona rural da cidade, o diretor não encontra um cenário muito diferente.

Para o olhar externo, é fácil encontrar as contradições capitalistas que marcam a vida das pessoas da capital do jeans. Nas falas que Gomes registra, todos querem ser donos do próprio tempo. Abrir uma pequena facção, no discurso, significa ser livre. Mas o que fica claro é que em Toritama pessoas podem ser tudo, menos livres. As jornadas de trabalho costumam começar às 6h ou 8h e terminar às 22h. Uma hora de almoço e outra de janta no meio tempo. A noite é para dormir e nada mais. As crianças brincam em volta das máquinas de costura. Não há lazer na cidade e o que se mostra é o lado mais perverso do capitalismo contemporâneo: os trabalhadores de Toritama são escravos de si mesmos, mas não fazem a mínima noção disso. Pelo contrário, são orgulhosamente “sujeitos de desempenho e produção”, como costuma dizer o filósofo coreano Byung-Chul Han. 

Produtividade e desempenho, inclusive, formam as bases para o funcionamento da indústria do jeans em Toritama. Na cidade, 94,86% das pessoas trabalham de forma informal e sem salário. O ganho é por peça e o salário vai depender do quanto cada ser humano é capaz de produzir em um dia. Na entrevista com uma trabalhadora doméstica que fecha bolsos e prega braguilhas, descobrimos que cada bolso custa 10 centavos, cada braguilha 20. “Se você conseguir fechar mil bolsos em um dia, você ganha R$100”, conta ela. “Se alguém aqui falar que a gente vive mal não sabe do que está falando, vivemos muito bem”, completa. 

Além de ser dono do próprio tempo, outra motivação para ter a própria facção ou lavanderia é ganhar mais. De forma “autônoma” ganha-se mais do que estar segurado por uma CLT. “Menos direitos, mais empregos” é lema do pólo têxtil do Agreste muito antes de Paulo Guedes chegar com sua “revolução trabalhista”. O que marca essa narrativa de abundância do livre mercado, porém, é a escassez material que habita no segundo plano da narrativa do diretor.

Nas falas que Gomes registra, todos querem ser donos do próprio tempo. Abrir uma pequena facção, no discurso, significa ser livre. Mas o que fica claro é que em Toritama pessoas podem ser tudo, menos livres.

Como praticamente tudo acontece na informalidade é muito difícil ter dados oficiais, mas Toritama sofre com falta de infraestrutura, ausência de espaços de promoção de cultura e lazer, saneamento básico precário e a maior parte da população continua pobre e com baixa escolaridade. Lavanderias formais, confecções não-precárias e tecnologia na produção aparecem de forma tímida e não conseguem se sobrepor à realidade de paupéria permeada por um trabalho braçal, repetitivo e sem nenhum senso de significado para além do dinheiro. O sonho de quase todo mundo na cidade é ser rico ou ter a própria fabriqueta. 

Além das pequenas fabriquetas, trabalho doméstico e facções, Toritama também tem dezenas de lavanderias, muitas clandestinas, que beneficiam o jeans

 
Além da noite, há dois momentos que marcam uma pausa na produção frenética da cidade: a Feira do Jeans, que acontece aos domingos, quando as facções se preparam para vender a produção da semana para compradores que chegam de vários lugares de ônibus e carros, e o período de Carnaval. No feriado mais importante para a população de Toritama, a cidade fica completamente deserta e sem o barulho das máquinas. O objetivo é ir à praia; o Carnaval é tempo de se divertir. Mas o trabalho incessante do ano inteiro não paga as férias para muita gente. Uma semana antes do primeiro dia do Carnaval as famílias vendem geladeiras, televisores, fogões e as próprias máquinas de costura. “Essa geladeira não vai fazer falta?”, indaga o narrador do outro lado da tela. “Vai, mas quando eu voltar eu trabalho e compro outra”.

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