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Quando o Medo Vira Realidade: Indo da Eco-ansiedade ao Trauma

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  • Bibiana Haygert
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Victória Lobo

3 min. tempo de leitura

Medo do futuro para si mesmo e para as próximas gerações, culpa, sensação de perda, sensação de impotência. Todos esses são sintomas de um novo mal que já aflige muitos, principalmente crianças e profissionais que lidam com a crise climática diariamente, como cientistas e jornalistas.

Descrita pela Associação Americana de Psicologia em um relatório sobre mudança climática e saúde mental como “o medo crônico da catástrofe ambiental”, a eco-ansiedade não é uma patologia em si. Afinal, não há nada de errado em se preocupar com algo realmente preocupante. Mas em alguns casos a preocupação deixa de ser apenas um incômodo e começa a prejudicar o dia a dia da pessoa, virando de fato um transtorno, como o transtorno de ansiedade generalizada ou a síndrome do pânico.

A eco-ansiedade está vinculada a antecipação de eventos futuros potencialmente ameaçadores. Por isso, existem críticas ao foco da mídia no novo conceito por ser uma ideia elitista, que só faz sentido para quem ainda não sentiu na pele o impacto da crise climática, uma parcela cada vez mais seleta da população.

Embora o termo tenha se tornado um assunto popular, principalmente por contemplar tantas pessoas que pela primeira vez se deparam com a ideia de uma ameaça existencial, talvez um fator mais importante da relação entre as mudanças climáticas e nossa saúde mental seja o que acontece depois que experimentamos seus efeitos em primeira mão.

Desastres meteorológicos, climáticos ou hidrológicos aconteceram em média todos dias nos últimos 50 anos, de acordo com um novo relatório da Organização Meteorológica Mundial. Conforme a temperatura média do planeta aumenta, vemos aumentar também a frequência, e muitas vezes a intensidade, de eventos extremos. A não ser que se invista em medidas de mitigação e adaptação, teremos muito mais pessoas atingidas anualmente.

As consequências desses desastres são diversas. O relatório diz que mesmo com o número de eventos aumentando, as fatalidades vêm diminuindo consideravelmente, principalmente graças ao desenvolvimento de ferramentas de previsão e alerta. Já o impacto econômico desses eventos só cresce. Mas um fator ao qual não se dá tanta atenção é o impacto psicológico.

A exposição direta a eventos extremos pode ter efeitos imediatos como a perda da vida ou outras consequências sobre a saúde física, a perda de pessoas próximas ou a perda de propriedade, mas também pode causar impactos a longo prazo na saúde mental. Uma análise de diversos estudos do Reino Unido aponta que o risco de ser afetado por problemas psicológicos duradouros é de 4 a 8,7 vezes mais alto em pessoas que vivenciaram uma inundação do que naquelas que não passaram por isso. O risco aumenta quando há perda de alguma pessoa próxima ou a necessidade de se mudar por ter perdido o seu imóvel, e também é maior quanto mais alto foi o nível a que a água chegou dentro de casa.

Pode parecer que não há nada de novo em experiências traumatizantes traumatizando suas vítimas. É verdade que inundações e outros eventos extremos sempre ocorreram, mas a escala e a freqüência com que esses traumas estão acontecendo hoje não tem precedentes e não estamos prestando a devida atenção. Só no ano passado 98,4 milhões de pessoas foram afetadas por desastres naturais. Quantas delas ainda estão lidando com as consequências?

Das condições diretamente associadas a esses desastres o transtorno de estresse pós-traumático (TEPT) é a mais comum e uma das mais graves. O quadro pode interferir no funcionamento social e educacional e se refletir em sintomas como intrusão de lembranças angustiantes, recorrentes e involuntárias do evento traumático; esquiva e isolamento social para evitar situações que reavivem o evento e hiperexcitabilidade com alterações negativas em cognições e no humor.

Para quem vivenciou um evento extremo como o caso da inundação, mesmo anos após a experiência, uma chuva mais forte pode desencadear ansiedade, ataques de pânico, dificuldade de concentração e insônia, muitas vezes tornando-se debilitante. Alguns buscam alívio no consumo abusivo de álcool e antidepressivos.

Um estudo com crianças e adolescentes que enfrentaram uma enchente na cidade de Rio Branco em 2015, possivelmente a maior que a cidade já viu, usou uma ferramenta de triagem de sintomas de TEPT e constatou que 40 dias após o pico do desastre, 57,4% das crianças e 94,7% dos adolescentes preenchiam os critérios para um provável diagnóstico do transtorno; 14 meses depois, as taxas caíram para 45,6% e 36,3% respectivamente.

Uma questão de saúde pública

Precisamos estar preparados. Em primeiro lugar, é fundamental o desenvolvimento de planos de prevenção e de resposta a desastres, o que muitos lugares ainda não têm. A melhoria dos mecanismos de previsão e alerta de catástrofes que conseguem, por exemplo, promover evacuações preventivas, é importantíssima para evitar mortes e seu acesso precisa ser expandido, principalmente para os países mais pobres. Porém, essas ferramentas nem sempre evitam o trauma já que mesmo a evacuação em si pode ser um evento traumático.

O planejamento para esses eventos deve incluir intervenções precoces pós-desastre de profissionais especializados em trauma que podem atuar prevenindo desfechos negativos, mas também com acompanhamento psicológico a longo prazo, já que alguns dos impactos não são apenas imediatos.

Igualmente importante é o cuidado com a saúde mental antes das catástrofes acontecerem. A construção de resiliência individual e coletiva só é possível se todos tiverem acesso a essa assistência desde já. Se adquirirmos ferramentas para lidar com a eco-ansiedade agora, por exemplo, estaremos mais preparados para lidar com o trauma depois.

Minimizar vulnerabilidades sociais já existentes é também essencial, pois elas exacerbam os impactos de desastres e funcionam como gatilhos extras para o trauma. Populações vulnerabilizadas correm mais risco de vivenciar desastres repetidos, que tornam a recuperação particularmente difícil pois a sensação de estabilidade nunca é restaurada. Se buscamos comunidades resilientes, precisamos de comunidades mais igualitárias e com coesão social.

Populações vulnerabilizadas correm mais risco de vivenciar desastres repetidos, que tornam a recuperação particularmente difícil pois a sensação de estabilidade nunca é restaurada.

A crise climática é uma questão de saúde pública. Seus efeitos na saúde mental são diversos e não é sequer necessária a ocorrência de um desastre. Vários estudos têm vinculado a exposição à poluição do ar pela queima de combustíveis fósseis a aumentos significativos em casos de ansiedade, depressão e suicídio. Outros conectam temperaturas altas a um aumento na violência, diminuição da capacidade cognitiva e de concentração e aumento de suicídios.

Cada emissão e cada grau de aumento de temperatura que evitarmos deve se refletir no nosso bem-estar psicológico, porém, mitigar as mudanças climáticas não é mais o suficiente. A saúde mental precisa ser contemplada de forma mais séria em nossas estratégias de adaptação, inclusive para que possamos nos adaptar a uma humanidade mais traumatizada.

Crise Climática e Saúde Mental é a série de matérias do Modefica para o Setembro Amarelo. Acompanhe durante esse mês as ações destinadas a tratar de como as alterações climáticas influenciam nas questões de saúde mental das pessoas, o que tem sido feito acerca do problema e o que ainda precisa ser feito para lidar com a questão.
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