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Racionalidade produtivista de empreendimentos descaracteriza a região de Ourém (PA), impactando a meteorologia popular.

Meteorologia Popular Utilizada Por Quilombolas é Ameaçada Por Alterações do Clima e Mineração no Pará

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  • Juliana Aguilera
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Luana Fernandes

8 min. tempo de leitura

Racionalidade produtivista de empreendimentos descaracteriza a região de Ourém (PA), impactando agricultura e práticas locais.

Na meteorologia popular, o comportamento das nuvens, o coaxar dos sapos e o canto das aves são conhecimentos importantes para entender sobre a chuva, o tempo de pescar e fazer o roçado. Em Ourém, Pará, o Quilombo Mocambo tem se utilizado por séculos desta sabedoria para se adaptar aos ciclos climáticos da região. Mas o modelo predatório de empreendimentos como a mineração de seixo, o desmatamento, a caça predatória e a oleria tem descaracterizado o meio natural e, por conseguinte, afetado a cultura popular. 

A meteorologia popular é também chamada, na literatura, como etnoclimatologia ou antropologia do clima e se refere a como os povos tradicionais lidam com o tempo e o clima frente aos impactos sobre a sociedade ao longo da história 1Tempo se refere às condições atmosféricas registradas em um período de tempo curto. O clima, por outro lado, é um panorama mais prolongado e completo dos padrões de tempo.. No quilombo Mocambo, poucos ligam a televisão para saber sobre a previsão do tempo, porque entendem que esta informação é feita em nível regional por meio da meteorologia popular. É isso que um estudo recente constatou, após analisar a prática diária de agricultores e pescadores quilombolas. 

Por ser uma comunidade agroextrativista, o quilombo é altamente dependente dos ciclos das chuvas para a sobrevivência, tendo em vista que sua infraestrutura é limitada e a logística de transporte e comunicação, desafiadora. Com o aumento médio de 1ºC na temperatura do ar na região amazônica nos últimos 30 anos, os impactos já são sentidos por esta população: além do desconforto do aumento das temperaturas e das chuvas fortes e repentinas, as alterações também impactam no inverno e verão amazônicos. 

Essa diferença fez com que a chuva se adiantasse em 2018. Ao invés de dezembro, ela veio em novembro, fazendo com que muitos agricultores perdessem o tempo de fazer o roçado para a safra do ano seguinte. Para Lene Andrade, especialista em Gestão em Sistemas Agroextrativistas para Territórios de Uso Comum na Amazônia, as pressões de atividades econômicas sobre os territórios de povos tradicionais “têm potencial para interferir negativamente na cultura, economia e ambiente dessas pessoas”, afirma.

O canto do pássaro, a presença das nuvens

Foi o Marquês de Pombal que, em 1752, introduziu escravos africanos para a construção das vilas de Bragança e Ourém, nas margens dos rios Guaçu e Caeté. A cidade se tornou uma importante rota de comércio Pará-Maranhão e, entre 1755 e 1778, desembarcaram dos navios da companhia de comércio do Grão-Pará e Maranhão mais de 53 mil escravos, trazidos de Guiné Bissau, Cabo Verde, Angola, Quênia, Tanzânia e Moçambique. 

Na Amazônia, segundo a literatura, “a contribuição cultural do negro é sistematicamente diminuída, e até negada, no conjunto dos seus valores constitutivos”. Mas, segundo explana Lene, apesar do ocultamento sistemático, a presença do negro segue resistindo na região. “O Pará, por exemplo, é o estado com maior número de delimitações oficiais de quilombos no Brasil”, explica. 

No Quilombo Mocambo, a agricultura é a principal atividade econômica, com destaque para o plantio de mandioca, hortaliças, árvores frutíferas, madeireiras e plantas medicinais. Alguns agricultores participam do Programa de Aquisição de Alimentos (PAA) e se utilizam da meteorologia popular para orientar o tempo da roça. Segundo o artigo Práticas Produtivas da Farinha de Mandioca na Comunidade Quilombola Mocambo, “o cultivo é orientado pelo ciclo lunar, especialmente lua crescente e lua cheia, que, segundo os agricultores, são as melhores fases para o plantio”. 

Cada variedade de mandioca plantada tem um período de colheita que varia de seis meses a um ano, assim os agricultores têm produção dispersa ao longo do tempo, garantindo a segurança alimentar de suas famílias. Outro aspecto importante é a tradição de plantar na época em que o clima está mais quente e úmido, chamado “plantio no tempo”, no qual é mais propício para brotação e enraizamento das estacas. 

Os conhecimentos são passados de pais e avós para os mais jovens, de forma oral. Entrevistado por Lene, um agricultor comentou que foi sua mãe que lhe ensinou a observar o céu de madrugada. “Mamãe me acostumou a me levantar às quatro horas da manhã. Ela olhava assim pro tempo e dizia: ‘olha, tá muito nevoado. Tá pra começar o inverno, já vai começar a chover’, ‘por que mamãe?’, ‘porque num tem quase estrela de madrugada’, relata, “eu me acostumei naquilo. Quando me alevanto, é a primeira coisa que eu olho”. 

Já um pescador relatou sobre recordar que o pai se baseia nos planetas: “tem uma estrela chamada sete-estrela. Quando ela está a uma certa altura, umas 20h, ele diz que ainda tá longe as chuvas. E quando está num nível bem alto, naquele horário, ele diz assim ‘vai chover, vamo plantar que vai chover’”. A meteorologia popular pode ser categorizada em curto (utilizada no cotidiano) e médio prazo (interanual ou sazonal).

Saberes de Curto Prazo

Quando a nuvem passa rápido

não vai chover

Quando a nuvem fica parada

vai chover
(a quentura também aumenta)

Quando as nuvens estão espalhadas

chuvas esparsas

Quando os pássaros do rio, marreca, coró-coró, saracura, tetéu cantam de madrugada

vai chover

Fonte: A meteorologia popular e seu uso em atividades produtivas na comunidade quilombola Mocambo, em Ourém, Pará, Brasil

Previsões a médio prazo estão relacionadas às estações do ano. Por exemplo, no inverno amazônico, os agricultores planejam o plantio de suas roças, após terem preparado a terra no verão amazônico. Os saberes tradicionais são também explicados pela academia, como a sensibilidade dos insetos nas mudanças relacionadas à queda da pressão atmosférica, que pode indicar a chegada da chuva. 

Um agricultor narrou que, em 2019, foi alertado pelo coaxar de sapos sobre a vinda antecipada da chuva e foi um dos poucos da comunidade que preparou a roça a tempo. “Nesse dia, o sapo começou a coaxar, eu digo, ‘rapaz! O inverno está próximo, amanhã vou queimar minha roça!’. Eu queimei, quando foi outro dia, a chuva começou”, relata. Na literatura, o comportamento dos sapos percebido pela pelos quilombolas por meio da meteorologia popular é explicado pela consequente disponibilidade de corpos d’água e sítios terrestres com alta umidade atmosférica, que são fatores ambientais importantes para sua reprodução. 

Saberes de Médio Prazo

Trovão à noite

chuva está próxima

Sete-estrelas tá na altura da meia noite, mas é 19h

chuva está próxima

Coaxar do sapo

anuncia início do inverno

Cigarra cantando no pau seco

anuncia início do verão

Passarinho coã cantando no pau verde

anuncia início do inverno

Passarinho coã cantando no pau seco

anuncia início do verão

Passarinho cauã, tetéu cantando de noite ou madrugada

vai chover

Floração laranjeiras e do café

sinal que o inverno chegou para ficar

Fonte: A meteorologia popular e seu uso em atividades produtivas na comunidade quilombola Mocambo, em Ourém, Pará, Brasil

Para além do clima, mineração e tráfico de animais silvestres

A principal motivação da busca pelo título do território do Quilombo Mocambo foi a entrada de fazendeiros, seixeiras e indústria de cerâmica na região. O título veio em 2012 e Mauro Santos, Presidente da Associação do Quilombo Mocambo, esteve presente desde o começo da legalização da terra. Ele também cita o impacto da pesca predatória de peixes de aquário e pássaros. “Vinham pessoas de Belém, que pegava e transportava esses peixes, também o papagaio curica, a arara curió”, relata, “eram de interesse de exportação e foram muito predados aqui no nosso território”. 

A professora Maridalva Souza, também moradora do quilombo, explica como as atividades predatórias impactam no dia a dia da comunidade. “Hoje tem muita derrubada, muita queimada. É muito calor, de repente muita chuva. Tudo isso faz parte destas atividades feitas lá trás e que hoje precisamos extinguir, para que possamos ter uma vida futura com mais dignidade”, afirma, “o contato com a Natureza tem que ser diário, precisamos dela para viver”. 

Ourém é a maior produtora de seixo do Pará. O início da exploração começou na década de 80, tendo, apenas no final dos anos 90, a primeira emissão de licença mineral para exploração do minério no município. Em seu artigo, Lene conclui que esta demora “leva a supor-se que há uma ausência e ineficiência do poder público quanto à fiscalização e controle territorial”. 

O impacto do setor também acontece pelo trânsito de caminhões que transportam o seixo, o que causou, por diversas vezes, problemas respiratórios em crianças e idosos. Foi estabelecido entre comunidade e empresas que, entre os horário das 13h às 15h, um caminhão pipa passará na estrada para umedecer o solo e amenizar a poluição. Porém, o crime ambiental acontece de diversas formas, como uma investigação policial apontou em 2013.

A extração ilegal de seixo resultou em contaminação do igarapé Furo Novo, prejudicando moradores locais que utilizavam da água para necessidades diárias, como cozinhar e tomar banho. Moradores do Quilombo Mocambo contam sobre igarapés que secaram diante deles, como é o caso de Mauro. Existem registros também de igarapés que foram assoreados e que, no período chuvoso, deixam um rastro de lama no local. As atividades de seixo, extração de argila (olarias) e desmatamento influenciam na desorientação das estações e, como num efeito dominó, na floração das plantas. No artigo de Lene, uma agricultora relata que, com a “mistura do verão e inverno, a flor brota diferente”. 

A pesquisadora destaca a importância do reconhecimento de saberes como a meteorologia popular por parte da academia para a preservação dos saberes quilombolas. “Para citar um exemplo da importância dessa junção de conhecimentos, podemos destacar a baixa densidade de estações meteorológicas na região”, salienta, “o saber empírico local, mais do que validar resultados de modelos, pode contribuir no entendimento das dinâmicas atmosféricas, a partir de suas perspectivas”.

O conteúdo dessa matéria foi alterado em 8 de setembro de 2022 às 11h47. Substituímos o termo “meteorologia quilombola” por “meteorologia popular”.

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