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A Resistência da Renda no Semi-Árido e a Necessidade do Fortalecimento Comunitário

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“Backstage O Backstage é o podcast do Modefica para falar sobre moda a partir de diversos pontos de vista e para muito além do que vemos nas passarelas, nas revistas, no Instagram e nas manchetes. Sempre com convidadxs especiais contando sua trajetória, e junto com nossa editora Marina Colerato, o Backstage debate indústria, carreira, questões de gênero e raça, temas quentes e futuro da moda. Ouça no Spotify ou iTunes.

O Backstage te convida neste episódio a se aventurar no interior da Paraíba, mais precisamente na região do Cariri, onde há setenta anos costureiras locais tecem a Renda Renascença. Conversamos neste episódio com Maria Costa, presidenta do Conarenda (Conselho das Associações, Cooperativas, Empresas e Entidades Vinculadas à Renda Renascença do Cariri Paraibano), educadora e rendeira. Falamos deste ofício que atravessa gerações e que luta pela sua sobrevivência ao lado do maior pólo de produção de jeans do Brasil, sobre a falta de estruturas e investimento de políticas públicas para incentivar a atividade na região e sobre o prazer de fazer peças que nunca “saem de moda”.
 

 
O Cariri Paraibano é dividido em região oriental e ocidental e se localiza no interior do estado, na porção semiárida. Por ali, Maria Costa conta que existem, aproximadamente, três mil mulheres rendeiras. A Renda Renascença chegou à região na década de 1950, por meio de uma freira de Recife. “Alguém ensinou alguém, que ensinou para alguém, que foi crescendo”, narra Maria Costa, que diz ter aprendido o ofício com a mãe e a avó, aos sete anos de idade. A renda se tornou uma tradição das mulheres da região. Pela praticidade de poder tecer em casa, o ofício se tornou uma forma de aumentar a renda familiar enquanto cuidavam dos filhos e da casa. Tudo de forma bastante informal.

Somente nos anos de 1998 a atividade começou a ser organizada: junto com um grupo da igreja católica, as rendeiras começaram levando suas peças para venda por meio de uma associação responsável por incentivar a economia solidária em Recife. Neste mesmo ano, o grupo de rendeiras encaminhou à prefeitura de São João do Tigre um pedido para a criação de uma associação, a Arca (Associação De Resistência das Rendeiras de Cacimbinha). Apesar dos grupos de rendeiras já existirem desde a década de 80, a estruturação desta associação permitiu acesso a incentivos públicos por parte das costureiras da região.

Maria Costa também esteve à frente da Arca. Os grupos de rendeiras, oficializados perante seus municípios ou não como associações, estão todos interligados pelo Conarenda para o fortalecimento do ofício que segue sendo feito por mulheres sentadas, com uma almofada no colo, tecendo manualmente, muitas vezes na calçada de suas casas.

O Conarenda, com sede na cidade de Monteiro, tem o objetivo de unir todas as associações, organizar suas peças com o selo de identificação geográfica do Cariri Paraibano, e suas idas a eventos no estado ou para outras regiões. Maria Costa conta que, com a ajuda de parcerias, que custeiam, por exemplo, o transporte, o grupo leva a Renda Renascença para São Paulo, Minas Gerais e Brasília. Nas reuniões mensais também são tratadas formas de expandir o ofício para o digital e atrair a juventude local.
 

Aportes pontuais

Na época da avó da rendeira, o ofício era feito de forma coletiva: um grupo de quatro ou cinco mulheres trabalhavam com peças grandes, como toalhas de mesa de banquetes e roupas de cama. Cada uma trabalhava em um pedaço, unidos posteriormente em uma peça única, normalmente vendida em cidades vizinhas. Com o passar dos anos, os grupos precisaram atender novas demandas da sociedade: com famílias mais enxutas, já não havia mais necessidade de peças grandes. E, assim, as rendeiras passaram a fazer peças de roupa, em sua maioria femininas e infantis. Formalizar as organizações também veio de uma demanda externa, pois para receberem aporte de governos e gestores em busca de fortalecer os grupos produtores de renda ranascença era necessário formalização.

As rendeiras ficam espalhadas pela região: o município com o maior número das profissionais é São João do Tigre, que possui a sede da Arca e mais três grupos de mulheres rendeiras; Monteira, vizinha, possui o Conarenda; outras cidades próximas possuem uma associação cada, com suas próprias lojas e modelos de produção. Parte importante das vendas acontece por meio de lojas com produtos especialmente pensados para turistas. Maria Costa nos conta que, em um cenário comum, esta época tem alta do turismo: “foi terrível que (a festa de) São João tenha sido cancelada por conta da pandemia”.

Embora o estabelecimento das associações tenha trazido alguns benefícios, Maria Costa explica que nunca houve um plano inicial, partido do grupo, de criar um coletivo com o objetivo de fortalecer as estruturas e trabalhar a história da Renda Renascença. “Por conta desse histórico, isso não fez com que as mulheres se preparassem melhor para o mercado e para as tendências futuras”, explica. Os afazeres cotidianos somado à inconstância de pedidos, o que torna necessário às rendeiras fazerem outros trabalhos para complementar a renda, dificulta ainda mais traçar planos e estratégias para o presente e futuro.

Ainda sim, Maria Costa avalia que graças aos apoios e formalização, a renda resiste na região. A rendeira conta sobre a região pernambucana onde a renda nasceu: “praticamente você vai lá e não vê mais nenhuma rendeira tecendo. Compradores de renda não tem mais, só tem uma pessoa que compra a grande toalha”. Por isso, ela reforça a importância de seguir com o modelo estabelecido enquanto buscam novas formas de aprimorar o trabalho com a renda na região. Apesar de não saber “como e com qual energia” buscar parceiros e amantes da renda que, assim como ela, entendem o ofício como parte de sua história, Maria Costa acredita que é necessário trabalhar com novos modelos de parcerias, investimentos e negócios.

Ao longo dos últimos vinte anos, as organizações do Cariri Ocidental receberam investimento de programas do governo do estado por meio do Projeto de Desenvolvimento Sustentável do Cariri, Seridó e Curimataú (Procase). Em 2014, através de dois convênios, o projeto destinou R$ 290 mil à Arca e Coopetigre – beneficiando diretamente 73 rendeiras. Em 2016, foi inaugurado a Casa das Rendeiras, em São João do Tigre, onde 50 rendeiras cadastradas trabalham com a Renda Renascença. O investimento no local foi de R$ 300 mil. Os investimos externos são sempre por tempo determinado, e não um apoio estrutural, o que dificulta o desenvolvimento socioeconômico das rendeiras e até mesmo a preservação desse patrimônio cultural.
 

A renda e a moda

Outro exemplo de apoios pontuais são as parcerias com estilistas consagrados, uma iniciativa que normalmente parte das prefeituras locais. O convite acontece para fomentar e divulgar o trabalho das rendeiras. Porém, são poucas as pessoas interessadas em estabelecer relações duradouras e horizontais. “A gente ainda vive nessa dinâmica – que é de fora pra dentro – e, às vezes, o coletivo acaba passando por situações desconfortáveis”, relata. Entre as experiências positivas para o grupo, Maria Costa lembra do trabalho com a Fernanda Yamamoto: “eu não participei, mas Fernanda Yamamoto já esteve aqui. Foi a primeira estilista que levou as mulheres que teceram as peças para conhecer o São Paulo Fashion Week. Para elas, foi emocionante”.

Mas, como Maria Costa bem pontua, são “universos distantes”. O “glamour da moda” não é visto no dia-a-dia das rendeiras de Cariri. Parte disso vem de alguns pontos negativos pontuados pela presidenta: mais de uma vez, estilistas que visitaram o local, levaram a renda sem dar nome às rendeiras. Vieram apenas em um momento que a renda estava em alta no mercado. A necessidade dos grupos, porém, é bem diferente; é preciso apoio para que haja independência e identidade.

É importante salientar como o ofício se interliga, na sua essência, com o que chamamos de sustentabilidade na moda. A Renda Renascença é um produto que não só desafia a lógica do fast fashion, do modelo de produção hiper-capitalista, tanto no seu tempo de produção como também na duração do produto. Maria Costa conta que, por diversas vezes, escutou de clientes nos eventos que participou que “eu tinha uma toalha (de renda) que era da minha vó e nunca ficou feia”.

Marina faz um chamado para quem nos ouve: tomando como exemplo o modelo mais horizontal trabalhando por Celina Hissa e a Catarina Mina – apresentado no episódio aterior -, que trabalha práticas manuais com objetivo de fortalecer os diversos grupos de artesãs da região. Esse investimento a longo prazo não só muda a realidade da baixa remuneração – Maria Costa estima que uma rendeira ganhe R$ 45 a R$ 50 em três dia de trabalho -, mas também traz a valorização da prática e aumento da auto estima. Tendo que se desdobrar com as demandas de outro trabalho e/ou da casa, as rendeiras não tem como se dedicar ao ofício e estudar assuntos como redes sociais ou moda.

Para Maria Costa, a estrutura atual é um desafio a ser superado. “A gente fica meio sem visão de pensar futuro porque as lideranças dos coletivos estão focadas nas encomendas”, explica, “não se pensa em coisas de longo prazo”. Assim como ocorre em pequenos negócios, faltam braços para planejar ações de longo prazo. Ocupadas em produzir produtos que são encomendados, as rendeiras não tem muito conhecimento, tempo, contatos e outras ferramentas para serem proativas na construção de um futuro para as associações e até mesmo para a Renda Renascença.
 

O coletivo deve continuar

Os desafios para a Renda Renascença são vários: assim como a baixa remuneração e a falta de investimento, as rendeiras não tiveram a oportunidade de cursar moda ou se profissionalizar para aprender a gerir melhor os grupos. E os jovens também não estão muito interessados em integrar as associações e trazer o conhecimento do novo. Maria Costa aponta que, para o jovem, que quer consumir a tecnologia, ir para grandes cidades ou trabalhar com uma remuneração maior, é mais atrativo. O valor pago pela Renda Renascença não é justo. Ela estima que, mesmo trabalhando oito horas por dia, ganhando o “maior valor” da região, ao final do mês uma rendeira não ganha mais que meio salário mínimo.

Aos poucos, as rendeiras do Cariri Ocidental tentam modernizar o ofício. A atividade, que sempre foi ensinada oralmente, tem pouco material escrito, mas agora dispõe de um Instagram. Um dos maiores desafios é sensibilizar a juventude para se unir às associações, para manter a cultura da Renda Renascença viva e evitar a evasão para Santa Cruz do Capibaribe, segunda maior área confeccionista do Brasil. A cidade fica há aproximadamente duas horas de São João do Tigre.

Outra questão válida de se pontuar são características do ofício, que falam muito de barreiras de gênero. Feito majoritariamente por mulheres, dentro de suas casas, mal remuneradas, intercalando jornadas e o trabalho de reprodução social, as rendeiras não conseguem se articular para pensar em futuro. Retratamos, há um tempo, um exemplo de como a ação de unir e reforçar bases de pequenos grupos – no caso, as costureiras do Agreste Pernambuco e a articulação da Fase – pode gerar uma força coletiva que busque por ações de fortalecimento e aportes públicos.

Em Cariri, existe ainda a dificuldade de se pensar em fazer o ofício fora do ambiente doméstico. Uma questão fundamental para que seja possível articular ações futuras e melhorar as condições de vida atual das mulheres da região. Quando se gera um aporte contínuo a uma associação, as rendeiras podem focar na demanda principal, seu ofício, e trabalhar ali, pensando em ações de pequeno, médio e longo prazo.

A busca por parcerias a longo prazo é uma forma de manter viva o que Maria Costa considera como “parte da sua história, da sua vida”. A rendeira relata rapidamente sobre parte da família que migrou para São Paulo e não mantiveram suas tradições, os laços familiares. “Quando temos essa relação de amor com a tradição, com algo que te dá orgulho, acho que tem todo um conjunto de amor ali envolvido”, conclui.

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