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Por Meio da Arpillería, Mulheres Imigrantes Contam Histórias de Luta e Resistência

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  • Julia Beraldi
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Victória Lobo

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Com referências que remetem à tradição da cultura popular chilena, no qual coletivos de costureiras contavam histórias por meio das telas, a arpillería é uma prática artesanal, normalmente feita em tecido de juta com retalhos de pano bordados à mão. Historicamente, esse fazer manual foi uma ferramenta fundamental para a luta das mulheres chilenas na ditadura militar de Pinochet (1973-1990). Um grupo de mulheres, com o apoio da cantora, compositora e folclorista Violeta Parra (1917-1967), encontrou na técnica um meio de dar voz ao que estavam vivendo no contexto da violência, opressão e silenciamento. Usando retalho e panos de roupas de entes queridos torturados e desaparecidos, elas enviaram as Arpilleras para embaixadas europeias, chamando atenção do mundo para o Chile. Esse movimento fortaleceu a pressão internacional e a resistência popular, contribuindo para o fim da ditadura em 1990.

Resgatar esse contexto de resistência e o uso da arpillería como ferramenta de reivindicação é o objetivo das oficinas de arpillería acontecendo em São Paulo entre grupos de mulheres bolivianas migrantes. Realizadas pelo Centro da Mulher Imigrante e Refugiada (Cemir), os encontros buscam também registrar histórias de vida e fortalecer suas raízes identitárias num contexto de opressão, silenciamento e violência.

Em 2019, a comunidade boliviana se tornou a comunidade imigrante mais populosa na cidade de São Paulo. Segundo dados da Polícia Federal e da Secretaria Municipal de Direitos Humanos e Cidadania (SMDHC), o grupo conta com mais de 75 mil habitantes, superando os 52 mil da tradicional comunidade portuguesa. Como já foi amplamente noticiado, é na indústria da moda e nos bairros centrais que a comunidade se instala. Por serem migrantes e, muitas vezes, não falarem português, esse grupo permanece à margem, numa rotina de sobrevivência permeada por baixa remuneração, jornadas exaustivas chegando aos casos de trabalho análogo à escravidão. Para as mulheres há alguns adendos: violência de gênero e jornadas triplas.

Segundo a consultora Soledad Requena, referência na comunidade latina na cidade, as atividades manuais, como a Arpillería, estão entrelaçadas com a história da América Latina. No Cemir, ela é uma das responsáveis por conduzir a metodologia há quase um ano, por meio das Rodas Warmis 1 warmis significa mulheres no dialeto Quechua . “É uma técnica que permite trabalhar dois aspectos: o trabalho manual, a parte criativa, no qual as mulheres são muito talentosas, e a parte da sensibilização, com as questões do mais profundo do nosso ser”, explica. A oficina tem duração de três meses, acontece aos domingos, único dia que as participantes, em sua maioria bolivianas, não trabalham. Apesar disso, elas ainda têm dificuldade de comparecer aos encontros pelas outras jornadas que são submetidas, como o cuidado da casa e da família.

Para facilitar os encontros, as oficinas não acontecem apenas na sede do Cemir, mas se movem nos bairros onde há maior concentração de mulheres migrantes como Tiquatira, Penha, Brás, Bom Retiro, Guaianazes e Carapicuíba. Em cada local existe uma liderança Warmis, uma mulher capacitada para auxiliar outras imigrantes latinas com questões de empoderamento e direitos. “Temos, hoje, 12 mulheres lideranças desenvolvendo esta atividade”, afirma Soledad, que também trabalha com cursos de formação de lideranças, “quando abordam questões de denúncia, elas ensinam ‘é o número 180 ou a delegacia da mulher’”. Formar lideranças é uma forma de amplificar o trabalho de combate à violência no seio da comunidade, costurando uma rede de apoio entre mulheres que se reconhecem e se entendem.

Uma tela sobre vida e trabalho

Miriam Guarachi é boliviana e migrou para São Paulo há quase 13 anos. Mãe solo, ela precisou se submeter a longas horas sentada em frente à máquina de costura, com o filho no colo, levantando apenas para se alimentar e dormir. Foi essa realidade que Miriam quis mostrar em sua tela. “Eu não tinha direito de ficar fora da oficina, o pagamento não era muito alto, era muito complicado. Você tem que trabalhar muito e tem que estar o tempo todo olhando para o relógio, porque o tempo vale ouro”, relembra. Apesar de ter mudado de emprego, ela afirma que muitas vizinhas bolivianas ficam na atividade até 23h, 24h.

Essa pressão é resultado de um efeito cascata que chega não só na costureira como também nos próprios donos das oficinas. Preços baixos e prazos curtos são o modus operandi da indústria da moda, forçando jornadas de 12 ou 14 horas para entregar os pedidos no prazo e pagar as contas no fim do mês. “Quando você trabalha desse jeito, isso influi em tudo”, reflete Miriam, “influi na saúde, você não consegue ir direito ao médico, ou esquece, ou não te deixam ir. Eu trabalhei assim e queria mostrar como as pessoas que trabalham como costureiras sofrem”. Os longos períodos de trabalho, relata ela, também afetam a vida social das trabalhadoras, que ficam isoladas e acabam não tendo contato nem com os vizinhos.

Formar lideranças é uma forma de amplificar o trabalho de combate à violência no seio da comunidade, costurando uma rede de apoio entre mulheres que se reconhecem e se entendem”.

Quando participou da oficina de arpillería, Miriam descobriu na técnica uma forma das mulheres tirarem de dentro de si algo que as incomoda e que é difícil de falar sobre. “Eu gostei muito de um trabalho de uma menina de 13 anos, que mostrou o que ela sentia, como o trabalho dos pais afeta a vida dela. Foi muito marcante para mim, porque tenho um filho da mesma idade”, relata. Durante as Rodas Warmis, o grupo conversa entre si e temas complexos surgem para a discussão. “Aparecem perguntas como ‘o que eu faço se meu marido me ameaça de morte por eu não me sujeitar a fazer o sexo forçado?’ ou ‘eu acabei descobrindo que não faço relações sexuais, mas que sou vítima de estupro’”, conta Soledad. Segundo a consultora, as lideranças não dão respostas prontas, mas encaminham as mulheres a atendimento especializado e oferecem apoio no processo.

Construção coletiva para transformar a realidade

Soledad já trabalhou a técnica com mulheres venezuelanas no Peru e, mais recentemente com mulheres camponesas de Goiânia, cuja experiência ela avalia como muito positiva. Em abril, ela estará na Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC), representando o Cemir, para palestrar sobre sua experiência de trabalhar com mulheres imigrantes. Além destas conexões, ela tem trabalhado com outros grupos latinos: “estamos construindo parceria com um coletivo de mulheres chilenas, que trabalham com a Arpillería, e queremos iniciar com um grupo de paraguaias”. Para isso, ela busca apoio de instituições públicas e privadas, além de igrejas. Apesar do custo da oficina não ser alto, ainda é necessário encontrar locais para realizar a atividade e um aporte para transporte e materiais.

O horário também é um fator dificultante: Soledad explica que existem pessoas interessadas em apoiar, mas que não querem trabalhar no domingo. “As mulheres imigrantes não têm disponibilidade de segunda a sábado porque elas trabalham. Para elas tirarem um tempo, no domingo, de duas a três horas já demanda uma grande logística”, afirma. No grupo de Miriam, as participantes alternavam sua frequência, justificando a ausência e impontualidade por problemas de saúde, trabalho acumulado, tarefas domésticas, entre outras. A costureira presenciou o caso de uma imigrante que retratou em sua tela as agressões que sofria do marido e que, pós-separação, parou de comparecer à oficina porque precisava trabalhar para sustentar os dois filhos.

Aparecem perguntas como ‘o que eu faço se meu marido me ameaça de morte por eu não me sujeitar a fazer o sexo forçado?’ ou ‘eu acabei descobrindo que não faço relações sexuais, mas que sou vítima de estupro.

Soledad Requena

Apesar de todas as dificuldades, Miriam acredita no potencial das oficinas e no que essas mulheres, por meio dos encontros e da arpillaría estão conquistando. Fundamentalmente, as oficinas tiram a mulher do isolamento cotidiano e são uma forma de expressão importante para as participantes. Para quem está de fora e quer fortalecer esse movimento, pode comparecer no 1º Seminário Mulheres Imigrantes e Refugiadas Construindo Estratégias de Enfrentamento às Violências de Gênero, que acontece em 28 de março, na Câmara Municipal de São Paulo. As arpillarías feitas pelas mulheres durante as oficinas irão expor o fluxo de trabalho, as violências e as estratégias que elas têm construindo para transformar a própria realidade. Além de lideranças bolivianas, o evento também reúne coletivos de mulheres de outras regiões, como mulheres africanas igualmente inseridas na rede produtiva da moda.

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