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Fibras amazônicas como tucum, buriti e tururi apresentam potencial para diminuir danos socioambientais das fibras mais utilizadas na moda.

Fibras Amazônicas Podem Fomentar Diversidade e Sustentabilidade na Moda

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  • Juliana Aguilera
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Victoria Lobo

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Fibras amazônicas como tucum, buriti e tururi apresentam potencial para diminuir danos socioambientais das fibras mais utilizadas na moda e fomentar sustentabilidade.

Embora exista uma gama diversa de fibras vegetais no Brasil, com destaque para as fibras amazônicas, temos cada vez menos acesso a elas. O desconhecimento sobre tal diversidade inegavelmente se relaciona com o monopólio produtivo do algodão, das fibras sintéticas (sobretudo o poliéster) e das fibras celulósicas (sobretudo a viscose) oriundas da eucaliptocultura

Porém, uma das formas de fomentar a sustentabilidade na moda é justamente diversificar a produção, investindo em fibras com produção local e descentralizada. Em se tratando das fibras amazônicas como o tucum, buriti e tururi, também estamos falando de fomentar uma economia que mantenha a floresta de pé e garanta condições de vida digna para as comunidades locais. Fortalecendo o fazer manual das mulheres, o trabalho de comunidades locais e cooperativas, a utilização destes materiais estimula também o respeito aos aspectos sociais, culturais e ambientais na produção. 

A pegada de carbono da indústria da moda, cujas emissões correspondem a 8% do total de todas as emissões globais, mostra a necessidade de buscar alternativas que repensem as características dos produtos e de todo seu ciclo de vida. Nesse sentido, os benefícios de utilizar fibras amazônicas de base vegetal podem unir-se também ao de valorizar culturas regionais e tradicionais, ensinadas, muitas vezes, oralmente, como é o caso com as espécies Astrocaryum chambira Burret, o Mauritia flexuosa Mart e o Manicaria saccifera Gaertn

Apesar do potencial para se tornarem materiais versáteis, sendo usados não só na moda, como também em utensílios, móveis, pisos e construção civil, as fibras amazônicas enfrentam as mesmas dificuldades das fibras regionais. Enquanto estudos apontam a qualidade, baixo custo, abundância e potencial de sustentabilidade destas fibras amazônicas, o interesse da indústria em investir nessas produções e diversificar sua base de matérias-primas permanece baixo. Ao mesmo tempo, a carência de incentivo público a esse modelo produtivo somado à desvalorização dos saberes tradicionais brasileiros faz com que os produtores não sejam motivados a seguirem com a produção. 

Tucum

Um estudo realizado pela engenheira têxtil Lais Pennas analisou características físicas e químicas do, além dos aspectos culturais da fibra e sua relação com a comunidade Vila Ecológica Céu do Juruá, em Ipixuna, Amazonas. Presente na Reserva Extrativista do Vale do Juruá, uma das regiões mais biodiversas do mundo, a especialista destaca a convivência harmoniosa das comunidades com a floresta, importante em um cenário de crise climática. 

Assim como as fibras amazônicas desta matéria, o tucum é utilizado para diversas funções, sendo os frutos, raízes e palmito para tratar doenças como malária, hepatite e febre amarela; as fibras da folha imatura para a fabricação de redes, bolsas e outros artesanatos. São retiradas uma folha por vez de cada palmeira, com preferência para as que não estão totalmente abertas. Quanto mais velha for a palmeira, mais resistente será a fibra.

São retirados de cada folha uma média de 133 a 159 metros de fio. Para a produção de uma bolsa de mão, por exemplo, é necessário uma ou duas folhas, enquanto para uma mochila pequena, de três a seis folhas. Em uma análise microscópica, o estudo revela que a fibra pode ser utilizada para processos de torção e fiação. A porosidade também é um aspecto positivo, pois significa facilidade em absorver corantes em processos de tingimento e oferecer conforto térmico em regiões de clima úmido. 

A fibra do tucum é chamada de “linha da lealdade”, pois está constantemente presente na vida na floresta, mesmo com a chegada do náilon e outras linhas industriais. “A produção de linha do Tucum é essencialmente feminina. Na comunidade, as mulheres tendem a ser mais bem pagas que os homens. É um trabalho artesanal muito fino, com uma técnica bastante apurada. Eu considero a feitura da linha do tucum uma bio joalheria”, explica Christiana Oticca, moradora e educadora da comunidade Vila Ecológica Céu do Juruá, localizada no município de Ipixuna, sudoeste do Amazonas, próximo à fronteira com o Acre. 

Moda artesanal

Feito à mão, com utilização de técnicas tradicionais e feito em pequena escala.

Pode se referir a um nível simbólico também, pois reforça ligações e conexões emocionais do consumidor com a peça. Na moda, o método pode ser visto em tricô, bordados, fiação manual.

Fonte: Caracterização Têxtil da Fibra do Tucum

Lais aponta que existe a vontade de adentrar na indústria têxtil por parte das artesãs. “Era interesse da comunidade ir além do artesanal. Só que as marcas de moda ficaram reféns do que tem no mercado, né? Que é sempre mais do mesmo”. Segundo Lais, existe pouco interesse da indústria em desenvolver novos materiais. “Por mais que a sustentabilidade esteja em alta, a indústria a enxerga como nicho de mercado. Essa foi uma grande questão limitadora do meu trabalho”, explica. A engenheira conta que não pode fiar o tucum por não conseguir articular com a indústria e Christiana ressoa a questão: “eu tenho vontade de fazer um estudo de tecnologia têxtil com a linha do tucum. Mas o que acontece, aqui no Brasil, é que as indústrias não estão dispostas a parar o maquinário para fazer pesquisa”. 

Lais cita um caso que presenciou no qual essa combinação deu certo: quando esteve em Portugal, conheceu uma estudante da Universidade do Minho que estava estudando a fibra Caroá. “Ela fazia parte de um programa do governo que incentivava empresas financeiramente”, relata, “a empresa pagava a bolsa dela, eles tinham vários materiais novos em pesquisa, em desenvolvimento, porque eles recebiam esse investimento. Isso não existe aqui”. 

Nina Lys Abreu, bióloga e Doutora em Políticas Públicas, Estratégias e Desenvolvimento, participou de um projeto de dois anos na Vila Ecológica Céu do Juruá e relembra os moradores contando que “a linha do tucum é tão forte que dá pra amarrar uma onça”. Ela relata que “a qualidade da linha está bem boa”, mas apesar das artesãs produzirem bolsas, macramê, colares, vivem uma vida muito sofrida. “Elas têm muitos filhos, têm que cuidar da roça e não têm água encanada, nem luz elétrica”, afirma.

A especialista também aponta os gargalos para que a rede produtiva das fibras amazônicas funcione ambientalmente e economicamente. Sendo eles: a dificuldade de armazenar os produtos, pois a floresta é muito úmida e o material pode pegar fungo; a falta de energia; o desinteresse dos jovens pela prática; a distância da comunidade das cidades, cuja viagem de barco pode demorar até cinco dias. Christiana também cita o fato da oficina funcionar a base de diesel e que está “trabalhando para conseguir instalar placas solares, o que vai significar uma economia gigantesca”. 

Buriti

São inúmeras as possibilidades de empregar a palmeira de buriti no dia a dia. No Maranhão, seu uso vai desde o consumo do fruto da palmeira, rico em vitaminas, ao uso do tronco em utensílios, brinquedos e canoas. A atividade é majoritariamente feminina, passada de geração para geração, segundo Nizete Carvalho, artesã de Barreirinha, Maranhão. Os homens são responsáveis, apenas, por retirar o “olho” da palmeira, escalando nela com a ajuda de um cordão. O “olho” é como chamam a folha jovem, que ainda não abriu, e que é transformada em uma linha mais maleável. 

Da folha jovem do buriti são obtidas duas fibras diferentes: uma mais flexível, chamada popularmente de “linho do buriti”, e outra mais rústica, o “esboço do buriti”, utilizada na confecção de cestarias e conjuntos de tapetes. A fibra do linho é empregada em tecidos, malhas e crochês. Nizete faz parte da Artecoop, a Cooperativa dos Artesãos dos Lençóis Maranhenses, que conta hoje com 25 artesãs de sete comunidades da cidade. 

Sociobiodiversidade

O conceito busca integrar a conservação da Natureza com o enfoque cultural, englobando produtos, saberes, hábitos e tradições próprias de determinado lugar ou território.

Assim, a biodiversidade passa a não ser entendida apenas como classificação e listagem de espécies animais e vegetais.

Fonte: Caracterização Têxtil da Fibra do Tucum

O processo artesanal segue seu próprio tempo, longe da rapidez do maquinário de fast fashion. A folha é desfiada até chegar no linho, que vai ser escaldado para chegar na cor branca, lavado na água corrente do rio. Depois é posto no sol para secar por três horas, “se o sol estiver bem aberto”, destaca Nizete. Caso não esteja, secar à sombra requer de oito a 12 horas. A Artecoop também trabalha com tingimento natural. É a única da cidade, que ensina outras associações e grupos que estão começando. 

Tingimento Natural

verde

Folha de Salsa

laranja

Urucum

amarelo

Açafrão

azul

Anil ou Gonçalo Alves

marrom

Casca de Coco da Praia ou Mangue

preto

Casca de Pequi

cinza

Casca de Manga

Fonte: Nizete Carvalho, artesã Artecoop

Para fazer o tingimento, é usado sabão e cinza para fixar a cor e para que “fique mais bonita”. Na pandemia, a Artecoop utilizou o momento de isolamento para criar novos modelos. Antes, Nizete conta que as artesãs tinham dificuldade de vender para além de Barreirinhas, mas hoje elas vendem online e para outros estados, inclusive já venderam para fora do país. A maioria do trabalho é feito sob demanda: “a gente não tem estoque. A cliente quer uma saia, um top, a gente vai e faz, mas não de grande quantidade. Mas fazemos, por exemplo, roupas para o Boi Barrica [festividade regional]”. 

O uso do buriti para confeccionar peças não é difícil, segundo Nizete, o que tem sido complicado é encontrar a fibra, pois o manuzeio errado por matar a palmeira. “A gente já fez curso e sabe o tempo certo de tirar o buriti, tirar o olho da palmeira” explica, “já tem outras pessoas que não sabem e quando vão tirar, acabam cortando as palhas que tem ao redor do olho”. Essa situação já acontece há pelo menos duas décadas em Barreirinhas, fazendo com que as artesãs tenham que comprar a fibra de outras cidades. “A cooperativa participou de dois projetos onde teve o replantio do buriti. A gente se preocupa com isso e já fizemos isso em outras comunidades também”, relata. É por isso que Nizete acredita que a preservação depende do conhecimento sobre a fibra e, portanto, estímulos tanto por parte de empresas quanto de governos. “O governo precisa olhar para os pequenos (artesões), trabalhar e fortalecer mais as bases”, afirma. 

Tururi

Extraído da palmeira Ubuçu, o tururi é utilizado para cobertura de casas, alimentação, produção artesanal e peças de vestuário. Segundo o estudo desenvolvido por Lais, o aspecto final do material desenvolvido se assemelha ao da madeira. Assim como os demais, essa fibra amazônica também precisa de estudos contínuos para entender o potencial de escalabilidade de sua produção. 

Lais acredita que o tucum, buriti e tururi podem ser escalados, mas não de forma industrial. “Quando entra na escala industrial, já começa a ferir os limites da Natureza. E esses limites, eles (os povos tradicionais) sabem muito bem. Por isso é importante valorizar esse conhecimento”, afirma. Em sua pesquisa, a engenheira têxtil analisa que as fibras de tururi têm resistência a impactos e são boas candidatas para o reforço de compósitos poliméricos.

Uma pesquisa realizada pela especialista em têxtil e moda, Amanda Monteiro, com a cooperativa Flor do Marajó, em Muaná, Pará, apontou que o tururi ainda tem seu uso muito restrito a produtos destinados ao turismo. A cooperativa produz bolsas, porta-níqueis, carteiras, bijuterias, chaveiros e outros acessórios. A tese aponta que “são desenvolvidos aprimoramentos nas técnicas de beneficiamento e tingimento do material fibroso, todavia tais técnicas são realizadas de maneira dispersa, não possibilitando assim que elas possam ser difundidas entre as comunidades regionais”.  

Amanda também realizou testes físico e químicos com o tururi e considera a fibra como um nãotecido 1 Conforme a norma NBR-13370, Nãotecido é uma estrutura plana, flexível e porosa, constituída de véu ou manta de fibras ou filamentos, orientados direcionalmente ou ao acaso, consolidados por processo mecânico (fricção) e/ou químico (adesão) e/ou térmico (coesão) e combinações destes. : “é tipo o TNT, ele é uma estrutura de várias fibras pequenas que se entrelaçam, mas não tem como fazer fiação”. O Tururi tem um potencial sustentável, mas é preciso entender como trabalhar com ele. “Acho que é necessário o contato da indústria e da pesquisa para entender melhor essa realidade e as formas de aumentar sua escala”, reflete a pesquisadora. 

Saberes tradicionais

conjunto de conhecimento sobre a vida, meio ambiente, seres vivos, bem como a integração entre todos os elementos expressos por meio de crenças, usos e práticas de um grupo social.

Tem como principal mecanismo de difusão a transmissão oral.

Fonte: Caracterização Têxtil da Fibra do Tucum

Para a academia, também existe a questão de guardar o processo. Amanda destaca que a instituição tem que registrar os processos tradicionais de alguma forma, para preservar o conhecimento que pode se perder com o tempo. Essa realidade quase aconteceu, no caso de Nina, que conta que, quando esteve na comunidade da Vila Ecológica Céu do Juruá, há 10 anos, apenas uma mestra artesã dominava a técnica da fiação do Tucum. Foi preciso estímulo de lideranças para que outras pessoas aprendessem. Hoje, são cerca de 20 artesãs e, como apontado por Laís e Nina, o trabalho contínuo de pessoas como Christiana é fundamental para que a prática não seja esquecida e tenha, cada vez mais, capacidade de se expandir em mercados regionais, ampliando também a utilização das fibras amazônicas.

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