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Relatório Revela Que Desmatadoras do Cerrado Encabeçam Cartas Compromisso com a Região

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  • Juliana Aguilera
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Victória Lobo

8 min. tempo de leitura

A receita pronta já é exaltada há um tempo: cresce a produção de commodities no novo “Celeiro Brasileiro”, o Cerrado, cresce também o nível de desmatamento na região. As soluções também já foram postas à mesa: a necessidade das empresas rastrearem suas redes produtivas e apoiarem acordos como o Manifesto Cerrado.

Elas se comprometem, assinam acordo e endossam falas, mas, segundo o estudo Chain Reaction Research (CRR), uma coalizão entre as organizações Aidenvironment, Profundo e Climate Advisers, elas são, justamente, as principais desmatadoras do bioma nos últimos anos.

O Cerrado é a savana com maior biodiversidade do mundo, se estende por mais de 200 milhões de hectares – o equivalente a Alemanha, França, Inglaterra, Itália e Espanha combinados – e contém 5% de toda a biodiversidade do planeta, com algumas espécies endêmicas. O bioma é responsável por estabilizar o clima regional e regular as bacias hidrográficas que fornecem 40% da água doce do Brasil. Outra função essencial do Cerrado é a capacidade de reter carbono, muito falado atualmente, por conta da necessidade de redução das emissões dos Gases de Efeito Estufa (GEEs). O Cerrado também é a região agrícola mais produtiva do Brasil e tem sido desmatado em ritmo acelerado.

De agosto de 2019 a julho de 2020, empresas ligadas à soja e à pecuária foram responsáveis pelo desmatamento de 734 mil hectares, segundo o Programa Nacional de Monitoramento de Florestas por Satélite (PRODES). Essa área equivale a metade da cidade de São Paulo – um aumento de 13,2% em relação a 2019. O CRR aponta que 28,3% desse total está relacionado com à expansão da soja na região, sendo os principais atores produtores de destaque no mercado, como: SLC Agrícola, Nuveen e JJF Holdings e Participações. A maioria dessas organizações tem relação comercial com empresas como Cargill e Bunge.

Outro ator de destaque no relatório são varejistas como Cencosud, Carrefour e Casino Group (acionista controlador do Grupo Pão de Açúcar), os principais canais de venda de carne bovina. O Grupo Casino, aliás, foi processado, no início de março, por povos indígenas da Amazônia brasileira e colombiana e ONGs francesas e dos Estados Unidos por romper com a lei francesa “Dever de Vigilância”, de 2017. A lei afirma que empresas sediadas na França com mais de 5 mil funcionários devem adotar medidas adequadas e eficazes para prevenir graves violações de direitos humanos e ambientais em toda sua rede produtiva.

O estudo também aponta a responsabilidade de financiadoras internacionais, como Santander, HSBC, Rabobank e Credit Agricole por garantirem créditos aos principais desmatadores da região. Para somar ao cenário de crescente desmatamento, são levados em conta os acordos de proteção do bioma, que são assinados pelos principais desmatadores e a grilagem de terras.

Monitoramento

Para chegar a estes números, a Aidenvironment monitorou, de 2018 a 2020, hotspots de desmatamento para identificar e reportar mensalmente tais eventos. A partir dos alertas, foram rastreados a rede de suprimentos de commodities para determinar os atores. O projeto encontrou as ligações entre a rede de abastecimento e produtores e comerciantes de soja por meio de registros públicos, pesquisa documental e conjunto de dados de parceiros locais no Brasil.

Para as empresas de gado, a Aidenvironment e seus parceiros usaram amostras de produtos de carne congelada em supermercados para identificar os matadouros de origem e documentos de transporte de animais para determinar os fornecedores diretos e indiretos de frigoríficos. Os conjuntos de dados foram mapeados e sobrepostos aos dados de desflorestamento do Cerrado em 2020, para calcular as taxas de desmatamento e riscos vinculados a cada grupo.

Porém, os pesquisadores alertam que o número ainda é uma estimativa conservadora, pois foram calculados apenas dados de desmatamento em fazendas com plantações de soja já existentes em 2017. Tais números não abrangem fazendas que começaram a plantar soja a partir desse ano.

Os Atores Soja e Gado

A safra da soja de 2018/19 no Cerrado correspondeu a 40% dos 123 milhões de toneladas da produção brasileira – quase um milhão de baleias-azuis, o maior mamífero da Terra. A SLC Agrícola é uma das maiores produtoras de soja do Brasil e, em 2020, foi uma das maiores desmatadoras da região. Ainda no mesmo ano, em setembro, ela havia se comprometido a conter o desflorestamento do Cerrado e transferir sua produção apenas para áreas já desmatadas. A empresa disse que essa política entraria em vigor após a conversão de 5 mil ha de vegetação do bioma, valor que foi ultrapassado em larga margem em 2020 – ao, total, a SLC Agrícola desmatou 10 mil ha.

Os principais clientes da SLC Agrícola são: Cargill Agrícola S.A. (27,6% das receitas) e Bunge Alimentos S.A. (17,9% das receitas), de acordo com a demonstração financeira da empresa buscada pelo estudo. A empresa também é uma das principais produtoras do algodão BCI no Brasil. Apesar de não ser contemplado pelo estudo, é importante salientar que somente em Goiás, a SLC Agrícola detém 20 mil hectares de produção de soja, milho e algodão em cultura rotativa.

Apesar dos números, a derrubada de vegetação nas fazendas da SLC Agrícola está de acordo com o Código Florestal Brasileiro, mas o estudo salienta que as ações violam os compromissos de desmatamentos zero de seus clientes e de grande parte dos compradores de soja de operações downstream 1atividades do final da rede produtiva. Nesse caso, empresas que compram da SLC Agrícola.

Outra empresa de destaque é a Nuveen, que possui 64 propriedades no Brasil, sendo 44 delas no Cerrado. A empresa produz diversas culturas de grãos, como soja e milho. Em 2018, ela adotou uma política de desmatamento zero que proíbe a aquisição de terras que tenham sido desmatadas com vegetação nativa, mas os dados mostram uma lacuna entre a implementação dessa política, pondo os ativos da empresa em risco de reputação.

A soja está intimamente ligada à carne bovina e à grilagem de terras. O grão e seus derivados comerciais são ingredientes essenciais para a ração do gado, cuja carne é outra grande commodity brasileira. Não é novidade que grandes frigoríficos como JBS, Marfrig e Minerva estejam relacionados à destruição do Cerrado. Segundo o CRR, foram mapeados 1.984 ha (12,5 Parques do Ibirapuera) de desmatamento nas propriedades que abastecem diretamente a JBS. Já fornecedores da Marfrig e Minerva foram ligados a 531 ha e 238 ha de desmatamento, respectivamente. O relatório reforça que “isso se baseia em uma pequena amostra de fornecedores do Cerrado” e que “as pegadas reais dos frigoríficos são muito maiores”.

O próximo elo dessa rede são as varejistas: os supermercados são o principal canal de distribuição de carne no Brasil, representando 76% do consumo interno. Entre as cinco maiores redes de supermercados no país, Carrefour Comércio e Indústria, Grupo Pão de Açúcar – como dito anteriormente, tendo o Grupo Casino como acionista controlador – e Cencosud Brasil respondem por grande parte da carne bovina vendida por aqui. Somente o grupo Casino está ligado a 1.237 ha de desmatamento no bioma (ou aproximadamente 8 Parques do Ibirapuera).

A rastreabilidade é ponto-chave nessa equação: em média, uma única transação com fornecedor direto inclui compras de 15 indiretos. Em 2020, JBS e Marfrig anunciaram compromissos para monitorar suas redes de suprimento indiretas, mas a eficácia de ambos ainda não foi vista.

Marco Garcia, consultor da Aidenvironment e um dos autores do estudo, aponta que a mensagem do estudo é clara: “é importante que as pessoas saibam de onde vem a carne que eles estão comprando e os impactos que esse setor tem no Cerrado. É também importante que eles saibam sobre o link entre a soja e o gado”. Para as empresas nacionais e internacionais, a mensagem é a mesma. “Elas precisam ver o impacto que seus produtos estão tendo no meio ambiente, nesse caso, no Cerrado”, explica, “o estudo foca, principalmente, o quanto o desmatamento está ligado a cada empresa, ambos produtores quanto comerciantes, mas existem outros fatos, como o impacto que essas grandes empresas têm sobre pequenas comunidades, populações indígenas, a grilagem”.

Cartas Compromissos e a (não) Implementação de Políticas

O Cerrado tem pouca proteção do Código Florestal brasileiro. No bioma Amazônia, os proprietários privados devem preservar até 80% das suas propriedades, enquanto esse valor é de apenas 20 a 35% no Cerrado. O relatório aponta mecanismos voluntários e coalizões intersetoriais entre empresas que “clamam” pela proteção do bioma.

Um exemplo famoso é o Manifesto do Cerrado, que conta com a Declaração de Apoio de 160 empresas de bens de consumo e investidores, que endossam os objetivos do documento e se comprometem a conter a perda de floresta ligada à produção agrícola. Estão nessa lista empresas como Unilever, Walmart e Tesco, marcas com grande histórico de destruição do meio ambiente. A Unilever, em especial, faz parte do fundo de investimento &Green, que fechou acordo de US$30 milhões (R$ 168 milhões) com a Marfrig para a empresa investir em pecuária livre de desmatamento na Amazônia e Cerrado.

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Em resposta aos pedidos para que as tradings recusem a comercialização de soja de regiões desmatadas do Cerrado a partir de 2021 e que implementem sistemas robustos de monitoramento, o presidente da Associação Brasileira das Indústrias de Óleos Vegetais (Abiove), André Nassar, disse que as empresas não concordam com a imposição de uma data limite “de forma abrupta”. Segundo o porta-voz, isso pode prejudicar agricultores que cumprem a legislação brasileira e, ao invés disso, a associação propõe uma compensação financeira aos agricultores que concordem com o desmatamento zero no Cerrado – algo que nem deveria ser discutido ou “compensado” e sim visto como uma obrigação.

Tendo em vista que políticas são feitas da boca pra fora, ou não saem do papel, e propostas de diminuição de desmatamento e de emissões de GEEs são sempre jogadas para 2030, 40 e 50 – para não “afetar os agricultores” – fica claro o porquê os comerciantes de soja e gado continuam abrindo espaço para o desmatamento no Cerrado. O CRR destaca políticas que não tem data limite para encerrar o desmatamento e aberturas legislativas como os Termos de Ajustamento de Conduta (TACs) vinculados às frigoríficas que não se estendem ao bioma – e que, mesmo presentes na Amazônia, não impedem que as mesmas façam negócios com empresas que não respeitam unidades de conservação, territórios indígenas e demais áreas ilegais.

A única saída é, de fato, a fiscalização, a transparência, o cumprimento das leis e a cobrança da população sob todas as empresas desse ciclo destrutivo. Marco destaca o sistema de multas do Ibama, que é antigo e que precisa ser cumprido, e todo o sistema que precisa ser articulado para chegar ao desmatamento zero. “Muitos elementos precisam estar no lugar e trabalhar juntos para conseguir isso”, comenta, “governos com as leis adequadas, empresas privadas com as políticas certas, consumidores com a mentalidade certa, atuação de ONGs”.

Apesar do setor pecuário ser majoritariamente financiado por empresas nacionais, o peso de investidores estrangeiros ainda é grande. O CFF aponta que tais instituições “fornecem US$ 14,5 bilhões (R$ 81 bilhões) para o setor de carne bovina e US$ 11,2 bilhões (R$ 62 bilhões) para a indústria da soja”.

A Europa possui clareza em sua legislação ambiental com iniciativas como a lei francesa “Dever de Vigilância” e o Regulamento de Divulgações de Finanças Sustentáveis (SFDR), que entrou em vigor em 10 de março, e deve exigir maior transparência sobre os riscos de sustentabilidade e questões de financiamento de commodities que levam a danos ambientais.

Sendo o segundo maior mercado consumidor da soja brasileira, a União Europeia deve mirar nessas lacunas antes de fechar o Green Deal europeu. Senão, seguirá encenando, assim como todas as empresas desmatadoras do Cerrado, assinando a sustentabilidade apenas no papel.

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