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Rodas de Conversa São Ferramentas de Organização e Combate à Violência de Gênero

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  • Juliana Aguilera
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Graças a seu formato circular, que gera sensação de acolhimento e horizontalidade, as rodas de conversa têm sido cada vez mais utilizadas por entidades para mapear a realidade, desafios e características de grupos sociais, superando as principais barreiras de contato.

Em novembro de 2019, a CNTRV (Confederação Nacional dos Trabalhadores no Ramo Vestuário da CUT) divulgou o diagnóstico final do projeto Promover os Direitos Humanos e Fortalecer a Ação Sindical e a Igualdade de Gênero no Ramo Vestuário do Brasil. O estudo foi feito ao longo do ano e mapeou as condições de trabalho das mulheres no setor da confecção. Foram 18 encontros locais, nas cidades de Pouso Alegre (MG); Colatina (ES), Ipirá (BA), Fortaleza (CE), São Paulo (SP), Sapiranga (RS) e Sorocaba (SP), que contaram com a participação de 160 mulheres.

A compilação dos dados só foi possível através da aproximação com as trabalhadoras por meio de ferramentas como as rodas de conversas. Cida Trajano, presidenta da CNTRV, afirma que pensou na utilização das rodas desde o início da concepção do projeto, que é uma parceria entre a entidade e o Instituto Observatório, com realização da Solidarity Center e apoio do Instituto C&A. “No dia a dia, as lideranças sindicais não têm o poder de entrar nas empresas, a conversa com as trabalhadoras fica limitada na porta da fábrica”, explica, “a partir das rodas de conversa, nós podemos saber sobre a outra pessoa, o que ela passa, o que está sentindo, faz e pensa. Sem esse tipo de escuta, é impossível saber o que acontece”.

Através do compartilhamento de vivências, foi possível conhecer como a violência e o assédio moral e sexual estão enraizados na indústria da confecção. As trabalhadoras relataram casos de assédio moral, sexual e violências, que foram compilados em 71 tipos e subtipos. Normalmente, as violências partem de homens em cargos superiores, como gerentes ou proprietários de fábricas pequenas, e são usadas para intimidar as mulheres e condicionar sua permanência no trabalho.

Um grupo de mulheres se juntando em círculo para trocar experiências e contar sobre o próprio dia a dia pode parecer banal, mas essas articulações têm gerado não só dados que auxiliam na criação de políticas públicas, como também a formação de lideranças capazes de encabeçar projetos, apoiar outras mulheres e articular a comunidade pela demanda de direitos frente ao poder público.

Diante dos resultados obtidos pelo estudo, por exemplo, a CNTRV apontou sete recomendações para combate à violência de gênero nas confecções: sindicatos mais presentes nos locais de trabalho para aproximar as trabalhadoras da entidade e estabelecer a troca de informação; um canal de recebimento de denúncias anônimas; fortalecimento de convenções coletivas para enfrentamento das violências apontadas; parceiras com a Cipa (Comissão Interna de Prevenção de Acidentes), como instrumento para ampliar a formação e qualificação dos trabalhadores(as); ações de formação e capacitação; pensar estratégias de ações coletivas e gerar solidariedade no ambiente de trabalho.

Momento de escuta e respeito

Taciana Gouveia, coordenadora do Fundo Saap (Serviço de Apoio e Assessoria a Projetos), alerta que não basta reunir pessoas em um círculo para ter uma roda de conversa. “Não é a disposição das cadeiras, o título da atividade”, explica, “na verdade, uma roda é uma ferramenta pedagógica para que a gente consiga, mais do que falar, ouvir”. A coordenadora trabalhou com a metodologia quando mapeou grupos de costureiras no Agreste Pernambucano e na cidade do Rio de Janeiro. Em conjunto com organizações e ONGs locais, ela articulou quatro rodas: em Caruaru, Paulista, Recife e na capital carioca, com a participação de mais de 130 mulheres.

“Uma roda é uma ferramenta pedagógica para que a gente consiga, mais do que falar, ouvir”.

Taciana Gouveia

Com aproximadamente três horas de duração, a atividade possui formato leve, animado e pouco expositivo, com o intuito de acolher mulheres que trabalharam o dia todo e estão cansadas. Além disso, as rodas de conversa também são capazes de acolher as crianças. Liliana Barros, socióloga e educadora social da Cidadania Feminina, uma das organizações parceiras do Fundo Saap neste projeto, explica que para trabalhar com as mulheres é preciso incluir as crianças, já que muitas são mães e só podem estar presentes se a criança puder estar também. “A gente procura um espaço onde as crianças possam ficar, mas não as tiramos da roda. Isso deixa a mãe numa situação mais confortável, segura, até mesmo para poder falar”, reforça.

Outra colaboradora da pesquisa foi Beth Amorim, educadora social do grupo Cactos Gênero e Comunicação, ela utiliza há anos a metodologia das rodas para dialogar com grupos de mulheres periféricas, como pescadoras artesanais – que, em alguns casos, são analfabetas. A ferramenta é uma ótima oportunidade para dialogar de forma mais fácil e ter um bom resultado. Com o Fundo Saap, Beth participou da roda de Paulista, que envolveu parcerias com faculdades, sindicatos e costureiras. “Tivemos falas mais politizadas de sindicatos, representantes de universidades, mas as costureiras também tiveram suas falas valorizadas, porque, na realidade, é a fala do sujeito político sobre o tema de que estávamos tratando lá na roda [que importa]”, afirma.

A abordagem do formato circular é uma tentativa de tornar a atividade menos formal, sem o tom intimidador, que muitas vezes inibe as mulheres menos instruídas a falarem, e motivá-las a compartilharem suas experiências. Liliana relata que, às vezes, muitas têm conhecimentos, mas, por vergonha e receio, preferem ficar caladas. Dessa forma, as rodas ajudam a quebrar o medo e o gelo.

No Rio de Janeiro, com a participação de convidados, os grupos debateram temas como previdência social, ausência de direitos e formalidade. Já em Recife, a roda aconteceu para apresentar a realidade da pesquisa feita com as costureiras do Agreste Pernambucano. “Muitas mulheres vão comprar na Feira da Sulanca para revender nos bairros periféricos da capital, então, é uma reflexão sobre o mundo da costura”, afirma Taciana. Já a roda de Caruaru permitiu um tom de mobilização, pois as participantes eram as costureiras presentes que participaram do mapeamento. Além do retorno dos resultados, os grupos conversaram sobre as ações futuras e se mobilizaram para apresentar os dados na Assembleia Legislativa de Pernambuco.

Solidariedade e senso de comunidade

O uso da metodologia é ideal não só pela facilidade de circulação de fala, mas também para criar um ambiente amigável em um momento de contato inicial com um grupo que não tenha proximidade com determinado tema. Para Taciana, as rodas de conversa são processos acumulados de repetição, pensamento e experimentação da realidade, estudo e pesquisa, de mobilização e de luta que transforma. Cida relata que, a partir do momento em que as mulheres foram chamadas a participarem das rodas, ela percebeu não só um sentimento de solidariedade entre elas, mas também o surgimento de propostas que, se não eliminam por completo, diminuem todas as formas de violências citadas pelas mulheres trabalhadoras do setor da confecção.

As rodas também foram fundamentais para o surgimento de lideranças entre as costureiras bolivianas, em São Paulo. A consultora Soledad Requena, referência na comunidade latina na cidade, trabalhou por três anos com diversos grupos junto ao Cami (Centro de Apoio e Pastoral do Migrante). De 2017 a 2019, Soledad trabalhou com quase setecentas mulheres, em 13 bairros, formando 25 lideranças. “Muitas delas melhoraram as oficinas de costura, se tornaram empreendedoras, reafirmaram seus direitos, enfrentam melhor o tema da violência. Tem resultados que não são necessariamente quantitativos, mas qualitativos”, afirma.

Soledad diz que não fez nada além de ouvi-las. A consultora explica que existe uma resposta cultural, um fator de organização coletiva em grande parte da América Latina, especialmente no setor do vestuário, que é despertado quando estas mulheres falam. “É quase um efeito natural que elas se tornem lideranças”, reflete, “elas falam melhor o português, socializam no mercado, nos espaços culturais, na Praça Kantuta, sentem menos medo, vão ao posto de saúde, vão matricular a criança na escola e acabam orientando outras mulheres”. Soledad explica que as lideranças são variadas, algumas ainda precisam de formação, mas que a necessidade faz com que elas falem. Nas rodas, ela começava com “contem o que vocês fizeram nesta semana”. A partir desse início, as mulheres compartilhavam as dificuldades, as alegrias, falavam em espanhol e no seu dialeto.

A importância do fortalecimento do grupo é vista como urgente no cenário atual da migração: com a crise na Bolívia e a dificuldade de entrar na Europa, a tendência é que os grupos migrantes cheguem a países que são, aparentemente, mais flexíveis com a sua entrada, como o Brasil. Para o futuro, Soledad pretende fazer uma pesquisa com as lideranças, para ajudar a colher informações, construir diagnósticos e formar parcerias. “O que acontece, quando se fala das mulheres imigrantes, é que a academia não conhece a realidade delas”, explica. A meta é que a pesquisa ajude as instituições que estão focando no combate ao trabalho análogo à escravidão e à violência doméstica.

Soledad reforça que organizações atuando com as comunidades latinas em São Paulo não podem perder o contato com a base. “Você tem que ir aos bairros, porque é lá que estão o maior contingente de mulheres bolivianas”, explica. Liliana acredita que deixar o ego de lado, sair da posição de mostrar o seu saber através de uma mesa e trabalhar essa troca de conhecimentos de uma forma mais pé no chão, mais popular, é a atitude necessária para chegar mais perto das pessoas. Beth, que trabalha com pescadoras artesanais, admite a resistência delas de falar sobre políticas públicas, mas ela insiste no diálogo: “a gente tem que falar as ameaças que temos pela frente e como elas repercutem diretamente na vida das mulheres enquanto pescadoras. A gente tem que diversificar, divulgar, utilizar mais essa ferramenta [as rodas de conversa] nas nossas atividades”, finaliza.

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