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Lições Climáticas da Pandemia: Frente ao Colapso, Decrescimento Econômico Deve Virar Debate

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  • Carol Bardi
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Aos poucos, os brasileiros estão se dando conta da gravidade da pandemia que assola o mundo inteiro. Acredito que o coronavírus deve mudar absolutamente toda a forma de pensar, agir e nos relacionar enquanto nação. No meio do caos, as pessoas são obrigadas a relembrar como somos seres sociais: contratos, viagens, encontros, casamentos, reuniões, estudos, romances cancelados. Os encontros e eventos que não foram postergados se tornaram foco e propagadores da doença que não tem previsão de acabar tão cedo.

Se de um lado o Covid-19 escancara nossa conexão e dependência coletiva, de outro ele se mostra como sequela de um sistema que, paradoxalmente, triunfa sobre a base filosófica do individualismo, acumulação e crescimento econômico infinito no famoso lema “cada um por si, Deus por todos”: o capitalismo global. Em tempos de crises e colapsos, fica claro quem são os adversários e perdedores nesse jogo: a maioria da população mundial e a própria Natureza, da qual somos parte integrante. Nessa conta, e como sempre, os mais pobres e vulneráveis aparecem como as principais vítimas de um sistema desigual.

O momento é, portanto, propício para lembrar que estamos mais conectados do que nunca, dependemos cada vez mais uns dos outros e só superaremos essa situação com senso de coletividade e ações comunitárias. A mudança não acontecerá sem esforços conjuntos e muito menos se mostra como missão simples, mas a pandemia nos apresenta uma fissura importante no modus operandi do mundo. Uma possibilidade de aplicar sistemas alternativos que vêm sendo desenvolvidos por cientistas sociais no mundo inteiro, como o decrescimento econômico. Há grandes discussões sobre o nome, métodos, formatos e possibilidades para fazê-lo. O escopo deste artigo é apresentar a base para seu surgimento e subsidiar discussões futuras sobre o tema.

Antes da queda

A comunidade científica em peso aponta, há dezenas de anos, para o que tem se convencionado chamar de Antropoceno 1 O termo Antropoceno surgiu no fim do século XX, cunhado pelo químico Paul Crutzen, laureado com o Nobel de Química em 1995. Este termo é usado para descrever uma nova era geológica – uma escala normalmente medida em milhões de anos – iniciada a partir de 1750, na qual a pegada ecológica deixada pelos humanos tem afetado de forma drástica todos os sistemas de suporte à vida do planeta Terra , uma era geológica marcada pelas mudanças na natureza causadas por nós, homo sapiens. A decisão final sobre se de fato entramos em uma nova era será definida em novembro na Índia, durante o Congresso Internacional de Geologia. Considerando uma linha do tempo no formato de uma montanha russa, estamos no ápice do caminho antes da queda livre: uma mudança massiva e catastrófica para a vida de todos os seres vivos na Terra.

Uma das principais causas desta grande mudança a partir da revolução industrial é a mentalidade de crescimento econômico e consumo infinitos, preconizada pelos países do Norte Global e exacerbada pela entrada dos países do Sul no mesmo modelo de consumo. Alguns estudiosos e cientistas sociais começaram a apontar esta contundente falha sob a perspectiva de um planeta e Natureza com recursos finitos, e sugerir possíveis saídas para este labirinto mortal em que se encontra a humanidade.

Estamos mais conectados do que nunca, dependemos cada vez mais uns dos outros e só superaremos essa situação com senso de coletividade e ações comunitárias.

Hoje, a taxa de extinção de espécies da fauna e flora é mil vezes maior do que em eras pré-humanas. As projeções apontam para uma taxa 10 vezes maior do que a atual até o fim deste século. Isso significa dizer que estamos vivendo a sexta extinção em massa na história de vida da Terra, que tem por volta de 4,6 bilhões de anos. Para piorar, seria a primeira vez que uma extinção em massa aconteceria em tempo histórico, isto é, dentro de uma escala temporal humana de dezenas ou centenas de anos, em vez de muitos milhares ou milhões de anos. Também seria a primeira extinção em massa causada por uma única espécie, em vez de eventos massivos como asteróides ou eras glaciais.

A Terra já sobreviveu a outras cinco extinções em massa. Por isso, não é o meio ambiente ou o planeta que precisam ser salvos. O que está em debate é a extinção de nossa própria espécie e de mais de dois terços de todas as outras que levaremos conosco. Com as taxas de desmatamento, poluição e extinção atuais, estamos colocando todos os sistemas de sustentação da vida, incluindo a vida humana, em cheque.
 

A responsabilidade é de quem?

Antes de falar do sistema de produção atual, precisamos reconhecer que tais intervenções humanas não são exclusividade da organização econômica dominante. Em seu livro Sapiens, Yuval Noah Harari dedica um capítulo inteiro à história da extinção de grandes mamíferos e aves causada pela espécie humana, 0 homo sapiens, por meio da caça e queimadas, quando dominaram técnicas de navegação e chegaram a outros continentes até então intocados pelos humanos, como a América ou a Austrália. “Muito antes da revolução industrial, o Homo Sapiens já era o recordista, entre todos os organismos, em levar as espécies de plantas e animais mais importantes à extinção. Temos a honra duvidosa de ser a espécie mais mortífera nos anais da biologia”, explica.

É igualmente inegável, porém, que a revolução industrial acelerou exponencialmente a destruição da Natureza. Não é coincidência que o Antropoceno tenha nascido junto com o sistema capitalista. Com a expropriação das terras comunais e dissolução dos sistemas sociais estabelecidos, vimos a introdução e crescimento da propriedade privada, que uma massa camponesa de seus meios de subsistência (alimento e moradia) e inicia a passagem violenta do feudalismo para o capitalismo.

A Terra já sobreviveu a outras cinco extinções em massa. Por isso, não é o meio ambiente ou o planeta que precisam ser salvos. O que está em debate é a extinção de nossa própria espécie.

Esse novo sistema de produção baseia-se na propriedade privada, no lucro e na acumulação de riqueza (dinheiro e mercadorias). A macroeconomia básica usa um modelo bastante simplificado para explicar a base do curso econômico na sociedade, chamado de fluxo circular de renda. Nele, desde que esse movimento não seja interrompido, o sistema funciona perfeitamente bem e se expande à medida que há investimento contínuo para aumentar a capacidade produtiva. Com aumento da capacidade, pode-se ampliar o número de empregos, de salários e com essa nova renda disponível para as famílias, estas podem gastar consumindo os produtos novos que foram produzidos.

Essa visão é chamada produtivista dentro da economia e não é mais exclusiva do capitalismo. É possível ser produtivista e enxergar um fluxo circular e expansivo de produção mesmo numa economia não-capitalista, como a economia soviética, que também favoreceu a produtividade e uso de recursos naturais e humanos para expandir sua economia e a produção de bens e serviços, sem muita preocupação com a preservação do meio ambiente. A ideia por trás do produtivismo é que mais mercadorias, bens e serviços trazem maior prosperidade, ou felicidade, à sociedade.

Fluxo economico circular. É interessante notar como esse fluxo fechado se parece bastante com um dos modelos básicos de ciência ambiental sobre o funcionamento do fluxo de energia e capital natural no meio ambiente.

O grande problema trazido por diversos economistas ecológicos é que o fluxo circular da renda não é, de fato, circular. Se assim fosse, talvez ao menos sob a perspectiva ambiental, o capitalismo poderia ser funcional (desconsiderando aqui questões como crises, desigualdade social, acumulação de riqueza em poucas mãos, exploração de mão de obra, etc.). Na realidade, o atual ciclo de produção é linear, com entrada de insumos -> produção -> consumo -> descarte, sem que esse resíduo seja útil a qualquer outro processo produtivo ou mesmo natural.

Além disso, ocorrem descartes e poluição nas diversas etapas deste fluxo, desde a extração dos recursos, passando pela produção e consumo até o próprio descarte em si. Assim, extraímos recursos naturais, usamos uma parte e descartamos ao final um produto que não é mais passível de ser reutilizado pela Natureza. Temos feito isso há séculos, de forma cada vez mais intensiva e em maiores quantidades. Como continuar produzindo exponencialmente sem matérias-primas? Tudo, absolutamente tudo o que produzimos, requer extração de algum material da Natureza.

Herman Daly, considerado o pai da economia ecológica, trouxe conceitos da física (termodinâmica) e da ecologia (reciclagem de nutrientes) para mostrar que a oferta de insumos de produção (os chamados recursos naturais) não é infinita. Enquanto a economia está crescendo, o ecossistema global é estável tanto na capacidade de fornecer insumos de produção – terra, água, petróleo, borracha, madeira, celulose, energia – como na capacidade de absorver e reciclar dejetos e poluição.

Temos assim, de um lado, um sistema econômico que só funciona caso haja crescimento do consumo e da produção. Por outro, insumos naturais limitados são necessários para garantir esse crescimento. A matemática desta equação simplesmente não fecha.

A tecnologia não vai nos salvar

Muitos devotos do capitalismo e economia de livre mercado afirmam, contudo, que ambientalistas são alarmistas. A lógica utilizada é a de que nossa espécie conseguiu dominar a ciência a ponto do progresso tecnológico ser capaz de reduzir cada vez mais nossa dependência dos recursos naturais. Com aumento da produtividade, dizem, é possível fazer mais com menos. Há uma equação conhecida de cientistas ambientais e economistas ecológicos desde a década de 70 chamada de modelo IPAT. Apesar de muitas críticas (algumas cabíveis), este modelo busca simplificar e expor as principais variáveis responsáveis pelo impacto ambiental (I).

I = P x A x T

P se refere à população ou quantidade de pessoas. A diz respeito à afluência, ou renda. Ou ainda, PIB, produção, quantidade de produtos e mercadorias. Um ponto interessante sobre este modelo é que advogar limites ao crescimento populacional tem sido visto como uma contravenção das liberdades humanas básicas. Por sua vez, reduzir renda significa decrescimento econômico, o que é um anátema para qualquer país atualmente. Dessa forma, a única variável passível de mudança é T, que traz o conceito de tecnologia ou avanço tecnológico. Nessa conta, diminuir o T significa conseguir maior produtividade porque a tecnologia avançou.

De fato, a tecnologia e a ciência melhoraram muito a produtividade e uso de recursos nas últimas décadas. Aprender a converter energia de uma forma para outra, como explica Harari em Sapiens, foi um dos grandes precursores da revolução industrial e possibilitou deixarmos de depender apenas da energia solar e ciclos naturais para produzir alimentos e produtos. Com isso, conseguimos expandir a capacidade de produção e de usar máquinas em fábricas, nos campos e de enviar bens de consumo para o mundo inteiro.

Enquanto a economia está crescendo, o ecossistema global é estável tanto na capacidade de fornecer insumos de produção como na capacidade de absorver e reciclar dejetos e poluição. A matemática desta equação simplesmente não fecha.

Temos assim, de um lado, um sistema econômico que só funciona caso haja crescimento do consumo e da produção. Por outro, insumos naturais limitados são necessários para garantir esse crescimento. A matemática desta equação simplesmente não fecha.

A história recente mostra, porém, que nunca houve diminuição do impacto total ambiental derivado do aumento de produtividade ou avanço tecnológico. Exatamente porque o sistema econômico funciona apenas com base no crescimento, a eficiência nunca agiu contra ele. Ao contrários, ela impele o crescimento ao limitar a quantidade de insumos, derrubando o custo de produção. Isso, por sua vez, estimula a demanda por essas mercadorias que agora podem estar mais baratas e acessíveis, promovendo…. crescimento econômico. Longe de conter a produção total de bens, o progresso tecnológico serve para aumentá-la, ao reduzir seus custos. Tim Jackson, autor do livro Prosperidade sem Crescimento, destaca: “a eficiência é uma grande ideia. E o capitalismo, às vezes, a realiza. Mas, no mesmo momento em que o motor do crescimento produz melhoras de produtividade, ele também impulsiona a escala da produção, aumentando o uso de recursos, mesmo que de forma mais eficiente”.

Pode parecer óbvio, mas é preciso escrever e repetir ad infinitum: a tecnologia é uma das diversas ferramentas das quais precisamos lançar mão na transição para uma sociedade realmente sustentável. Ela não é, nem nunca será, a resposta por si só. Políticas públicas, esforço governamental, leis, mudanças sociais e de imaginário coletivo serão necessárias para encontrarmos rotas alternativas.

Crescimento, desenvolvimento e felicidade

Uma vez entendido o funcionamento atual de nossa sociedade e como chegamos na crise climática e ambiental em fluxo, é necessário esclarecer a falácia repetida à exaustão por alguns economistas: a de que o crescimento econômico é tão necessário, e deve ser perseguido a qualquer custo, porque é sinônimo de bem estar.

O paradigma irmão gêmeo de crescimento é desenvolvimento econômico. Economistas (ao menos os sérios) fazem a devida distinção dos conceitos. Enquanto o crescimento está ligado apenas ao aumento do PIB do país, independentemente da concentração de renda , o desenvolvimento econômico se refere a uma gama diversa de indicadores socioeconômicos como desigualdade, nível de renda da população, quantidade de pessoas em situação de miséria e pobreza, etc. Perseguir o desenvolvimento econômico é, portanto e em teoria, uma meta mais nobre do que almejar crescimento apenas. Contudo, cada vez mais os termos são usados como sinônimos, principalmente pela grande mídia.

Um problema ainda maior diz respeito ao próprio papel taxativo originado pelo termo desenvolvimento econômico. A autora Miriam Lang 2 Em seu artigo publicado no livro Descolonizar o Imaginário (Editora Elefante) traz à tona diversas objeções ao seu uso irrestrito. Uma delas é que a palavra expressa uma promessa aos países ditos “subdesenvolvidos” de participar do modo de vida (e consumo) dos países industrializados do Norte.

Os dados mostram, porém, que incluir os países no Sul no modelo de vida do Norte é inviável. As nações ditas desenvolvidas usam mais de 70% dos recursos naturais e correspondem a apenas 17% da população. Os Estados Unidos sozinhos são responsáveis por 30% do uso de recursos com apenas 4% da população mundial. Prometer que todo os 83% restantes da população global serão capazes de consumir – e poluir – nos mesmos níveis dos países “desenvolvidos” é mais do que irresponsável, é algo completamente descolado da realidade. Uma vez que, atualmente, já ultrapassamos a capacidade de regeneração de recursos de que a Terra dispõe, não haverão recursos naturais suficientes para fazer frente a esse aumento na produção e consumo.

A segunda objeção tem um caráter crítico à própria epistemologia do desenvolvimento. A globalização e o avanço tecnológico (videoconferências, viagens de avião, empresas multinacionais) nos dão a sensação de encurtamento das distâncias entre os países . Assim, facilitou-se o uso de indicadores como PIB e renda per capita como base de comparação ao “nível de vida” de todas as nações, sem levar em consideração qualquer especificidade. Dessa forma, e a partir do século XX, estabeleceu-se como parâmetro e norma ideal uma cultura e modo de vida de países como Estados Unidos e Inglaterra; um certo tipo de lifestyle ao qual todas as demais sociedades deveriam se assemelhar e almejar.

“Os modos de organizar a sociedade e a economia, os modos de conceber o mundo e de estar nele, os conhecimentos e saberes de grande parte da população mundial foram desqualificados como pobres, atrasados, insuficientes, por uma única razão: existiam por fora do sistema de produção e dos mercados capitalistas. Essa é a meta do desenvolvimento: incluir territórios não totalmente permeados pela lógicas e práticas capitalistas aos circuitos de acumulação de capital; transformar populações em consumidores, camponeses de subsistência em assalariados ou informais, bens naturais em commodities, propriedade coletiva em privada e vendável. Com um só objetivo: aumentar os fluxos de dinheiro e, assim, o crescimento econômico”, explica Lang 3 Descolonizar o Imaginário, página 31 .

Ainda que feita a distinção dos termos, a questão da relação do crescimento/desenvolvimento econômico com felicidade e bem estar continua aberta. Uma forma interessante de explicá-la é comparar o que é prosperidade e uma boa vida em países com níveis de renda muito diferentes. Um estudo conduzido pelo World Watch Institute demonstrou que por volta de 80% dos brasileiros disseram estar felizes com suas vidas. A Áustria e o Japão, com PIB per capita em dólares quase 10 vezes maior que o brasileiro à época da pesquisa (1995), tinham basicamente o mesmo percentual de cidadãos felizes. As Filipinas, com o menor PIB entre os citados, também se mantinha no mesmo patamar de satisfação com a vida. Ora, sabemos que a cesta de bens, mercadorias e serviços a que cada família tem acesso são muito diferentes. Como explicar, então, notas iguais e uma sensação positiva de felicidade e prosperidade? Na mesma linha, como explicar os indicadores sociais de Cuba tão altos quanto de países com PIB muito maior e acesso quase infinito à variedade de bens proporcionados pelo capitalismo?

A questão essencial, muito bem destrinchada por diversos autores, entre eles Tim Jackson 4 Também abordado por Johann Hari em Lost Connections, ainda sem tradução para o português; Descolonizar o Imaginário, da Editora Elefante e Alberto Acosta e Ulrich Brand, em Pós-Extrativismo e Decrescimento. , é que a prosperidade, ou de forma mais simplista, a felicidade, não tem uma relação linear e diretamente proporcional à quantidade de dinheiro ou mercadorias acumuladas.

Estudos 5 Para discussão completa e diversos estudos, ver o capítulo 3, Redefinindo a Prosperidade, do livro Prosperidade sem Crescimento de Tim Jackson. já evidenciam esse fato e, a partir de determinado nível de renda, pode-se inclusive diminuir a sensação de bem estar criando o paradoxo da felicidade. Uma série de fatores, incluindo liberdade, generosidade e uma comunidade com quem contar são alguns agentes responsáveis por quão felizes as pessoas são. Em Conexões Perdidas (tradução livre do livro Lost Connections, ainda sem tradução para o português), o autor Johann Hari se dedica a cada fator que tem levado a ansiedade e depressão a se tornarem o maior problema de saúde mental da atualidade.

Uma série de fatores, incluindo liberdade, generosidade e uma comunidade com quem contar são alguns agentes responsáveis por quão felizes as pessoas são. Nós não precisamos consumir (e poluir) como um norte-americano para termos uma boa vida.

Portanto, caso todos os habitantes do planeta estivessem num mesmo nível de renda e acesso a bens de consumo de um cidadão médio de países do sul global, seria possível, ainda assim, sermos tão felizes quanto um cidadão do norte. Porém, isto ocorreria a um nível de atividade econômica muito mais baixo, com menor produção e, portanto, menor impacto ambiental (dado que necessidades básicas humanas e outros fatores importantes estivessem sendo supridos). Nós não precisamos consumir (e poluir) como um norte-americano para termos uma boa vida.

Decrescimento como?

Chegamos, finalmente, à conceituação chave do texto. O arcabouço teórico destrinchado serve de base de argumentação para entendermos porque pensar em diminuir o tamanho da economia e a quantidade de mercadorias produzidas pode, ao menos, ser uma ideia passível de debate. Muitos dos autores citados 6 Douglas E Booth, Alberto Acosta, Herman Daly e Tim Jackson trazem muitos exemplos práticos e modelos teóricos em suas obras. discutem as melhores formas de se fazer isso, quais países devem fazê-lo primeiro e quais ferramentas temos à disposição para testar e experimentar essa nova mentalidade.

Algumas estratégias práticas são discutidas e debatidas há anos por cientistas ambientais e economistas ecológicos muito antes de chegarmos às catástrofes que estamos experienciando e assistindo diariamente em nossos smartphones com tecnologia 5G. Entre elas, reduções de carga horária mantendo o mesmo salário; investimento em tecnologia e energia limpa; foco em serviços e turismo ecológicos; remuneração aos países do sul pelos países do norte para conservação de suas florestas, impostos sobre poluição e emissões de carbono. Cada item desta lista dispõe de dezenas de artigos debatendo sua viabilidade e operacionalização. Além disso, toda uma “macroeconomia ecológica”, novos indicadores socioeconômicos e modelos de funcionamento da sociedade estão surgindo no campo teórico.

Aqui cabe um alerta: resolver problemas ambientais ou esverdear o capitalismo não o transforma no sistema ideal. E o mesmo é verdade quando falamos em decrescimento. No livro Pós-extrativismo e Decrescimento, Acosta e Brand lembram que uma economia em estado estacionário, ou em decrescimento, ainda pode manter relações mercantilizadas e coisificação 7 O ato de atribuir aspecto ou forma de coisa a algo ou alguém, como pessoas, sentimentos e relações pessoais das relações sociais típicas do capitalismo. Portanto, decrescimento ou estado estacionário não significam, necessariamente, fim do capitalismo ou são ideias anticapitalistas em si.

Os economistas ecológicos também alertam que mesmo conseguindo a façanha de impelir governos a mudar a estratégia e perseguir o decrescimento econômico, ainda assim teríamos muitos problemas de degradação ambiental, poluição e reversão de danos a ser feita. Demoramos alguns séculos para chegar nesta situação e provavelmente não a resolveremos em uma só geração.

Mas precisamos começar de algum lugar.

Esse é um ponto crucial sobre o decrescimento econômico. Talvez o maior trunfo do conceito seja o papel simbólico de economistas ousarem considerar que o status quo está fadado ao colapso; que a economia de “livre” mercado é, sim, falha, não-onipotente e não-onisciente e podermos, finalmente, sair do pensamento binário de que se criticamos o sistema capitalista isso nos torna automaticamente devotos de uma economia planificada e centralizada e/ou de um estado autoritário e pouco democrático.

Quando este maniqueísmo 8 visão de mundo, inicialmente religiosa, que divide tudo em apenas bom ou mau é empregado, assume-se que capitalismo é sinônimo de liberdade e, ao criticarmos este sistema, estamos criticando a liberdade individual.

Contudo, cada vez mais se questiona: de que liberdade falamos quando se constata o crescente número de pessoas que são obrigadas a deixar suas casas e sua vida por conta das mudanças climáticas? Quais os limites da liberdade numa sociedade e mundos ambientalmente injustos e racistas, onde metade da população do planeta é pobre e convive diariamente com os efeitos do descaso ambiental da população mais rica?

O que percebemos é uma incrível vocação para a inatividade e silêncio dos chefes de governo quando surgem estas indagações. Apesar disso, várias iniciativas acontecem e se fortalecem a nível comunitário, em bairros, favelas e coletivos sob a terminologia de economia solidária, economia do afeto e compartilhamento de tempo, rechaçando as bases da economia capitalista. Também há experiências de cooperativas de produção e consumo de energia solar, novas formas de produzir, compartilhar e consumir, invertendo a lógica individualista para a coletivista.

Todos estes empreendimentos e seus sucessos pavimentam e fortalecem o caminho para formatos de economia em estado estacionário ou em decrescimento. Contudo, a mudança real e necessária só acontecerá se houver vontade e capital político para executá-la. Isso pode ser constatado uma vez que os Estados-nação falharam miseravelmente em cumprir metas e acordos de sustentabilidade que assinam há décadas, como o Acordo de Paris. Experiências reais dentro da esfera pública ainda são virtualmente inexistentes. É somente por meio do conhecimento, reivindicação, luta política e articulação entre nós, cidadãos, por leis e projetos públicos eficazes que pode haver essa transformação.

A devastação e emergência trazidas pela pandemia do coronavírus prova que os governos do mundo inteiro têm capacidade para essa mudança ocorrer de forma rápida. Reduzir a emissão de carbono; a velocidade da produção; abrir mão de meios de transporte poluentes; adotar teletrabalho e cargas horárias menores; comer mais produtos locais, menos industrializados, menos carnes e animais não é um esforço impossível – na realidade, conseguimos executá-los de forma massiva no mundo inteiro em dias. Depois de poucas semanas, é possível ver de novo o céu azul em algumas cidades chinesas com a diminuição de poluição e os canais de Veneza nunca estiveram tão limpos. Estes fatos surpreendentes nos mostram que não estamos tão longe da perspectiva de conseguir maior equilíbrio com os seres não-humanos.

É possível usar esse momento tão triste e assustador para tirarmos lições para construir um mundo pós-coronavírus? Pode ser otimismo. Ou talvez o afã de se agarrar à esperança de um futuro. A esperança de que temos a capacidade de aprender com tragédias imensas e caminhar para uma sociedade melhor para todos, mais igual e justa, para humanos e não-humanos.

A série Lições Climáticas da Pandemia foi escrita por acadêmicas, militantes e ativistas e relaciona a origem e as consequências da crise do Coranavírus com a destruição ambiental e climática em fluxo. Acesse todos os artigos da série clicando aqui
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