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A Lógica da Dominação Explica o Porquê Sexismo e Especismo Andam Juntos

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modefica-IDENTIDADE-SELO-ECOFEMINISMO“Ecofeminismo: Mulheres e Natureza” é um série de matérias que busca discutir a importância da conexão das mulheres com os seres não-humanos e o meio-ambiente. A série tem como objetivo abordar as questões éticas e morais, além das questões culturais, sociais e econômicas relacionadas ao feminismo, veganismo e ecologia.

 

Você pode ouvir essa pauta no player abaixo. Todos os textos da série Ecofeminismo: Mulheres e Natureza estão disponíveis para audição no Spotify, iTunes, Google Podcast ou no seu player preferido.


 
A partir de conceitos e argumentos, a filosofia ecofeminista busca compreender as interconexões entre a opressão dos animais, da natureza, das mulheres e de outros grupos em situação de vulnerabilidade. Como visto anteriormente no texto “Por que mulheres, animais e natureza sob o mesmo olhar” as interconexões são diversas: histórica, empírica, ética, política e conceitual, por exemplo. Embora todas sejam importantes para evidenciar a necessidade de perceber o que há em comum entre as diferentes formas de dominação, a filosofia ecofeminista trabalha especialmente com a conexão conceitual.

Tendo gênero como categoria de análise, a filosofia ecofeminista entende que sexismo, especismo e outros “ismos” de dominação (classismo, heterossexismo, racismo etc.) funcionam sob a mesma lógica. É justamente por isso que a filosofia ecofeminista pode contribuir com argumentos em favor da superação da discriminação e opressão, seja contra humanas/os ou outros que não humanas/os.

Essa lógica de dominação faz parte de algo mais amplo, que a filósofa Karen J. Warren chama de estruturas conceituais opressoras. As estruturas conceituais são entendidas como um conjunto de crenças básicas, valores, atitudes e pressupostos que dão forma e refletem como alguém vê a si mesmo e ao mundo, funcionando como uma lente socialmente construída a partir da qual se percebe a realidade. Elas não são intrinsecamente opressoras, mas passam a ser quando são afetadas por fatores diversos (gênero, raça/etnia, idade, orientação sexual, espécie etc.). A partir de então elas são usadas para explicar, manter e “justificar” as relações de dominação e subordinação injustificadas.

Assim, uma estrutura conceitual opressora de viés machista, por exemplo visa “justificar” a subordinação das mulheres pelos homens. A base conceitual dessas estruturas de dominação está localizada nos dualismos de valor hierarquicamente organizados: homem/razão/branco/cis/humano/cultura de um lado, e mulher/emoção/negra/trans/animal/natureza do outro.

[quote text=”Uma concepção interseccional busca manter a coerência, seja prática ou teórica, na defesa das mulheres, dos animais ou de quaisquer outros grupos.” color=”#ad5580″ textcolor=”#ad5580″]

Em virtude das mulheres, a natureza e os animais estarem associados ao mesmo lado do dualismo, e os homens ao outro, é relevante pensar em conjunto na superação dessas dicotomias e nas diferentes formas de dominação, independentemente da espécie (seja contra humanas/os ou outros que não humanas/os).

Assim, da mesma maneira como sexismo e especismo fazem sentido juntos, considerando que há uma mesma lógica de dominação que visa justificar, mesmo que injustificadamente, a subordinação de mulheres e animais, a superação dos “ismos” de dominação também faz sentido de serem pensados juntos.

Uma concepção interseccional busca manter a coerência, seja prática ou teórica, na defesa das mulheres, dos animais ou de quaisquer outros grupos. Nesse sentido, romper com a lógica binária que hierarquiza e relega um espaço inferior às mulheres e aos animais (em contraposição aos homens e aos/às humanos/nas, respectivamente) significa romper também com a dicotomia direitos humanos/direitos animais.

Se, como afirma Tom Regan, os direitos humanos podem ser entendidos como um sinal de “entrada proibida”, que visam garantir a vida, a liberdade e a integridade física, então esses direitos morais precisam ser garantidos também aos animais, além dos/as humanos/as. Com a ampliação do círculo de moralidade, é a possibilidade de ter a vida, a liberdade ou a integridade física violadas que impõe essa proibição, não o fato de pertencer à espécie humana.

[quote text=”Achar que o movimento feminista é mais importante do que o animalista, ou ao contrário, não contribui com o objetivo de alcançar a libertação da opressão.” textcolor=”#f1d882″]

A partir do momento em que se considera moralmente os animais, tanto quanto os/as humanos/as, percebemos que se não tivermos um olhar mais amplo corremos o risco de reforçar outras formas de discriminação. Pensando a partir de um exemplo, podemos citar a questão do aborto. Em um argumento simplificado, ser a favor da vida dos animais implicaria um posicionamento contrário a legalização e/ou descriminalização da interrupção voluntária da gravidez, pois ser a favor da vida seria também ser a favor da vida do feto. Carol J. Adams, teóloga ecofeminsta, argumenta que a lógica é justamente oposta: ser a favor da vida dos animais é coerente com a posição a favor da vida da mulher e do respeito a sua autonomia. 1Desenvolvo os argumentos apresentados por Adams no artigo em co-autoria com Tamara A. Gonçalves no artigo “Aborto em perspectiva ecofeminista”, publicado na Revista Geni.

Teoricamente, humanos já fazem parte do círculo de consideração moral, mas na prática ainda existem muitas violações racistas, LGBTfóbicas, machistas, classistas e assim por diante. Um exemplo que ilustra essa violação/negação de direitos é o sistema penal extremante seletivo, que tem cor e classe social.

Logo, quando quisermos reduzir a violência contra animais e pensarmos no aumento de pena, não podemos fechar os olhos para o fato de que a população carcerária é composta majoritariamente por negros e pobres, que compõem os grupos mais sujeitos ao encarceramento, não porque cometam mais crimes, mas por estarem sujeitos à referida seletividade.

[quote text=”Ser a favor da vida dos animais é coerente com a posição a favor da vida da mulher e do respeito a sua autonomia” textcolor=”#808c94″]

A hierarquização das pautas – dos animais e dos/as humanos/as – dificulta essa ampliação. Achar que o movimento feminista é mais importante do que o animalista, ou ao contrário, não contribui com o objetivo de alcançar a libertação da opressão. Essa é justamente uma das contribuições do ecofeminismo: mostrar que a lógica é a mesma para todos os “ismos” de dominação. Na prática, nem todas as pessoas vão se engajar em todas as pautas – movimento negro, feminista, animal, ambiental etc. -, inclusive porque cada uma ocupa um lugar de representação. Mas se não incorrermos no erro de discriminar outras pautas, já estamos contribuindo para com todas elas.

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