Referência para a captura de carbono, os manguezais amazônicos vivem duas realidades antagônicas: estão majoritariamente dentro de Unidades de Conservação (UCs) e são considerados os mais preservados do mundo, ao mesmo tempo que sofrem com a captura predatória do caranguejo-uçá, retirada de madeira, microplástico e o esgoto provindo das comunidades próximas, o que os tornam, também, um dos ecossistemas mais ameaçados.
A capacidade de captura de carbono dos manguezais não só é um mecanismo para mitigar a crise climática, como também amenizar impactos de secas e desertificação em níveis regionais e mundial. No Brasil, os mangues estão de Norte a Sul do país e os estudos feitos a seu respeito confirmam sua importância no atual momento em que vivemos. Os manguezais nordestinos conseguem reter oito vezes mais carbono do que a vegetação da Caatinga, já os amazônicos contêm duas vezes mais carbono do que a floresta.
Os manguezais nordestinos conseguem reter oito vezes mais carbono do que a vegetação da Caatinga, já os amazônicos contêm duas vezes mais carbono do que a floresta.
Temos em solo brasileiro a maior faixa contínua desse ecossistema do mundo: são 9.900 mil km², que se estende do Amapá ao Maranhão, área maior do que Brasília. A maior parte desta faixa, cerca de 85%, se encontra na Amazônia Legal e mais de 80% dela está dentro de alguma UC. Conservadas, se comparadas aos mangues de outras regiões do Brasil, eles são áreas fundamentais para aves migratórias, que vivem, se alimentam e se reproduzem no local, além de possuir uma concentração significativa de caranguejos, moluscos, mariscos, mamíferos aquáticos e peixes de água doce e salgada.
Os manguezais também fazem parte da cultura e economia tradicional das populações da região. Somente no Pará, 80 mil pessoas vivem em Reservas Extrativistas (RESEXs) que contém o ecossistema. Essas populações são compostas por agricultores familiares, extrativistas, pescadores artesanais e marisqueiras. Os caranguejos e mariscos retirados do mangue não só alimentam as famílias e a economia local, como também são vendidos para outros estados e países. “A vida dessas populações tem sua base de sustentação nas relações marinhas”, relata Dayene Mendes, bióloga, pesquisadora e integrante da Associação Sarambuí.
Segundo a pesquisadora, as atividades extrativistas são feitas por todos os membros da família, mas as mulheres desempenham um papel fundamental nessa equação, pois são responsáveis por uma gama de funções: desde a catação do marisco, a limpeza dos frutos do mar, à venda e ao planejamento de reservas marinhas. “Elas são as principais autoras na preocupação com o ambiente e que lutam para dar uma vida melhor para seus descendentes”, afirma, “infelizmente, sua participação, muitas vezes, não é reconhecida”.
As atividades extrativistas são feitas por todos os membros da família, mas as mulheres desempenham um papel fundamental nessa equação, pois são responsáveis por uma gama de funções: desde a catação do marisco, a limpeza dos frutos do mar, à venda e ao planejamento de reservas marinhas
Engenheira ambiental e pesquisadora do Laboratório de Ecologia de Manguezal (LAMA), Indira Eyzaguirre, explica como acontece a dinâmica da mulher no meio do mangue e nas responsabilidades econômicas e familiares: “o serviço para as mulheres se encaixa de duas formas. Primeiro, o homem sai para a maré e tira o caranguejo, leva para casa. Aí entram as mulheres (mães e filhas, muitas vezes): elas cozinham o animal com o carvão e retiram a carne”.
A carne é, então, vendida para um atravessador para depois chegar aos pontos de venda finais como mercados e restaurantes. Segundo, Indira, essa é a forma mais tradicional para a geração de renda da família. Outra forma se dá pelas fábricas, que hoje existem em comunidades tradicionais, como a de Treme, que fica na Resex marinha de Caeté-Taperaçu. “Eles pagam um salário, têm carteira assinada, horário e dia certo para a mulher catar”, conta.
Uma outra face da relação mulher e mangue se dá na segurança alimentar da família para aquelas que não estão nas fábricas. Enquanto a atividade de pesca e catação de caranguejo é mais voltada para os homens, as mulheres se responsabilizam por pegar os moluscos – o sururu e o turu. Sem ganhar salário fixo, elas possuem o Bolsa Família e completam a alimentação com os recursos do manguezal.
Os impactos vindos da extração predatória e do plástico nos manguezais
O caranguejo tem uma simbologia forte nas atividades econômicas realizadas nos mangues, mas pouco se fala sobre a extração de madeira – outra atividade fundamental para as famílias tradicionais e que ameaça a biodiversidade local. Um estudo realizado em 2018, do qual Indira é co-autora, entrevistou 80 extrativistas estuarino-costeiros da vila de Ajuruteua, em Bragança, Pará. O artigo aponta que 55% dos extrativistas mesclavam pesca de caranguejo com extração de madeira do mangue. Essa madeira é utilizada para uso doméstico, construção e para venda. A retirada da madeira é uma das ameaças atuais para a conservação do ecossistema.
Segundo o estudo, os principais fatores que impactam negativamente os manguezais são: atividades predatórias, aumento da população local, exploração de madeira, superexploração de outros produtos do mangue. Já Dayene detalha esses impactos em cinco categorias: (i) a madeira retirada do mangue não segue critérios ambientais, sendo o mangue branco o mais retirado do ambiente – a espécie é utilizada para o curral de pesca, uma atividade essencial para as comunidades costeiras; (ii) a captura predatória do caranguejo-uçá, que é a fonte de renda mais relevante da costa amazônica brasileira; (iii) a queimada e pressão do desmatamento das áreas que ficam ao entorno do manguezal; (iv) os intensos processos erosivos ocasionados pela dinâmica das marés na praia de Ajuruteua, que contribui para a inserção de ocupação ilegal em áreas de preservação.
Dayene também chama atenção para (v) a contaminação do solo e da água, como “consequência da destinação incorreta de esgotos, derivado da falta de infraestrutura e de uma gestão inadequada dos riscos e vulnerabilidades socioambientais”. Plásticos e microplásticos são um dos objetos de atenção da pesquisadora, que tem trabalhado com os impactos do material no ecossistema.
Sua tese de doutorado, juntamente com seu projeto aprovado pela The Rufford Foundation, tem como objetivo quantificar e identificar os poluentes microplásticos nos manguezais da RESEX marinha de Caeté-Taperaçu por meio da análise de água e sedimentos desse ecossistema; quantificar e identificar os microplásticos presentes no caranguejo e promover a difusão de conhecimento científico e da população tradicional de forma a motivar a mentalidade conservacionista.
Dayene explica que, durante suas idas a campo para desenvolver pesquisas na floresta de mangues, ela percebia a presença de plástico no ecossistema e que quando procurou a respeito do atual cenário de poluição nos manguezais da Amazônia, não encontrou informações sobre os microplásticos. “Isso me fez querer realizar essa pesquisa e também ajudar a população local a entender como funciona esse tipo de poluição no ambiente”, explica, “a população usa o manguezal, direta ou indiretamente, via escoamento, para descartar bens e materiais considerados lixos”.
Para a pesquisadora, apesar dos manguezais da região Norte possuírem um bom nível de conservação, é importante obter dados sobre a poluição plástica, pois ela é uma dos maiores desafios ambientais do século XXI. “Quando pensamos em plástico, automaticamente vem à cabeça um saco plástico, uma garrafa de água, mas esquecemos que as partículas de plástico – os microplásticos – também são problemáticos, pois como podemos removê-los efetivamente do ambiente?”, questiona.
Apesar do uso dos recursos dos mangues pelas comunidades não ser planejado e os moradores relatarem a diminuição de caranguejos, Indira ressalta que ainda não se pode considerar a atividade como predatória e que é necessário fazer estudos sobre a situação. “Sem querer romantizar as comunidades, as atividades são tradicionais, mas não de um jeito expansivo”, explica. A pesquisadora aponta para um estudo do LAMA que, através de imagens por satélite, constatou que o impacto antropogênico sofrido pelos manguezais era menor que 1% na região bragantina. “O que temos que fazer é pensar em ações de prevenção para as mudanças climáticas, educação ambiental”, cita, “e planejamento participativo da linha costeira para os manguezais”.
O papel da academia e terceiro setor nas políticas públicas
Os resultados da pesquisa de Dayene devem ser encaminhados à Secretaria de Meio Ambiente de Bragança, para apoiar os tomadores de decisão nas ações educativas. Para Indira, o papel da academia e das organizações do terceiro setor é justamente fazer essa ponte entre comunidade tradicional e instâncias públicas. “A academia é o lugar que nós achamos para propor políticas públicas em prol do desenvolvimento sustentável”, afirma. A pesquisadora cita como exemplo as ações da Associação Sarambuí, que vem criando parceria com prefeituras locais para desenvolver projetos nas RESEX das cidades, promovendo educação ambiental e replantio de mangues participativo com a comunidade.
A parceria com as prefeituras é feita de forma a levar as demandas das comunidades para as autoridades locais e estaduais. Em uma ação recente, ocorrida no final de julho, a associação realizou uma roda de conversa entre uma deputada de Belém e as mulheres das comunidades extrativistas. “Ela vai levar as demandas, como cursos profissionalizantes, empreendimentos, caminhos para lidar com a violência doméstica”, enumera. Para Indira, essa função de conexão é um papel muito relevante do terceiro setor e da ciência, pois o poder público não tem “pernas para ir para os interiores do Brasil”.
Ela salienta que isso é o que considera uma extensão comunicativa, comunitária e inclusiva. “Não é ir numa comunidade, fazer uma palestra, um curso. Isso não é extensão. Extensão é fazer algo e mudar a vida dessa comunidade, dar suporte para que ela seja sustentável, tanto economicamente, quanto socialmente, ao longo do tempo”, afirma.
Um outro artigo também publicado em 2018 pela pesquisadora, revela que entre os vetores considerados impactantes nos manguezais está a falta de reconhecimento do seu valor social e ecológico. Apesar da grande maioria dos manguezais estarem presentes em UCs – e dentro da Lista de Sítios Ramsar 1A Lista de Zonas Úmidas de Importância Internacional é um tratado intergovernamental rateado na cidade iraniana de Ramsar e tem como objetivo a cooperação dos países membros na conservação e no uso racional das zonas úmidas do mundo. Isso significa que estas áreas têm prioridade no acesso à cooperação técnica internacional e apoio financeiro a projetos de conservação de seus recursos naturais. O Brasil dispõe de 27 Sítios Ramsar. – a falta de um sistema de saneamento geral também é responsável pela perda desse ecossistema. A maioria das UCs não contam com esse serviço básico. O estudo também aponta que resíduos domésticos e industriais, como combustível de pequenas e grandes embarcações e navios, ficam acumulados na lama dos manguezais.
Segundo Dayene, as UCs apresentam, atualmente, importantes deficiências, dificultando sua efetividade na proteção dos manguezais e comunidades locais. “Dessa forma, os problemas ambientais persistirão até que as políticas de comando e controle atuem, sem falhas, na fiscalização efetiva das normas estabelecidas”, relata. Na RESEX Marinha Caeté-Taperaçu, os responsáveis pela execução e fiscalização do plano de utilização e manejo são os próprios extrativistas locais, ficando a cargo da Associação dos usuários da Reserva Extrativista Marinha Caeté-Taperaçu (ASSUREMACATA) aplicação das regras, na condição de representante da comunidade.
Assim, os usuários podem realizar denúncias tanto pela associação quanto pelo IBAMA. “Alguns extrativistas sabem da importância de conservar e tentar minimizar os danos, pois possuem a preocupação de que um dia seu recurso de subsistência tenha fim”, explica, “porém, existem pessoas que visam o lucro e esquecem que o recurso possa vir a acabar”. É por isso que Dayene lista a educação ambiental em seu projeto.
A pesquisadora acredita que mostrar às pessoas que podem fazer pequenas mudanças pode ter uma diferença muito positiva para o ambiente. “Acabar com a poluição plástica é semelhante a um quebra-cabeça, pois vamos levar muito tempo e possivelmente será muito difícil. No entanto, cada um de nós é como uma peça desse quebra-cabeça, com habilidades e experiências diferentes a qual só precisamos colocá-los todos juntos”, afirma.
Essa é a 4ª matéria da série 97,5%: Oceano, Clima e Saúde Coletiva, no qual nos propomos a abordar a Década da Restauração Oceânica para o Desenvolvimento Sustentável, aproximando as pessoas que nos lêem do oceano, espaço que conhecemos tão pouco e que, apesar de estar distante do imaginário coletivo, é essencial para a saúde de todas as pessoas. Veja todas as matérias da série aqui.