As mulheres passam mais fome no Brasil do que os homens. É o que mostra um estudo realizado pelo economista Marcelo Neri sobre insegurança alimentar. A pesquisa aponta que, entre 2019 e 2021, houve queda no risco de fome para homens, de 27% para 26%, enquanto para as mulheres, o aumento foi de 14 pontos percentuais, de 33% para 47%. Entre as causas da feminização da fome no Brasil, pode-se destacar o corte financeiro e retrocesso das políticas públicas sociais, a deterioração do meio ambiente e a hierarquia sexual no campo.
A proporção de famílias com alguma insegurança alimentar teve queda de 35,2% entre 2004 e 2013, mas sofreu aumento de 62,3% deste ano até 2018, segundo o estudo. Esse número manteve-se elevado durante o auge da pandemia, sendo impulsionado em 21% – um novo recorde. Uma pergunta feita aos entrevistados, a respeito da segurança alimentar, é a seguinte: “houve, nos últimos 12 meses, momentos em que você não teve dinheiro suficiente para comprar a comida que você e sua família necessitava?”. A parcela de brasileiros que não teve dinheiro para se alimentar, ou alimentar sua família, no último ano subiu de 30% para 36%.
Em um contexto econômico, as mulheres foram as mais impactadas no mercado de trabalho, por carregarem responsabilidade maior no cuidado dos filhos e da família. Quando a fome é feminilizada, ela também atinge o resto da sociedade, em particular, crianças e idosos. As crianças, em especial, carregam essa consequência para o futuro, uma vez que a subnutrição infantil deixa marcas físicas e psicológicas. O estudo aponta que famílias com crianças são mais inseguras em alimentação, sendo 21,1% maior as chances para famílias com menores de 15 anos.
Segundo o Inquérito Nacional sobre Insegurança Alimentar no Contexto da Pandemia da Covid-19 no Brasil, 55,2% da população brasileira apresenta algum grau de Insegurança Alimentar e Nutricional (IAN), podendo ser leve, moderada ou grave. A Lei Orgânica de Segurança Alimentar e Nutricional (Lei nº 11.346/ 2006) afirma que situação de IAN pode ser identificada a partir da “fome, obesidade, doenças associadas à alimentação inadequada, consumo de alimentos de qualidade duvidosa ou prejudicial à saúde, estrutura de produção de alimentos predatória em relação ao meio ambiente, bens essenciais com preços abusivos e imposição de padrões alimentares que não respeitem a diversidade cultural”.
Já o artigo “ComiDHAA de verdade para todos: desafios para a efetivação do direito humano à alimentação adequada no cenário de crises no Brasil”, publicado na revista Saúde e Sociedade, afirma que alguns estudos permitem caracterizar os vulneráveis à condição de IAN, cuja maioria tem cor de pele preta ou parda, baixa renda, baixa escolaridade, vivem em condições de moradia e saneamento precárias e tem a saúde comprometida. O documento ainda aponta que é possível associar a situação de IAN com marcas da desigualdade social, étnico-racial e de gênero.
Nutricídio e fome no Brasil
A insegurança alimentar entre 2019 e 2021 atingiu os mais pobres do Brasil de forma mais agravante que os mais ricos. De acordo com Neri, o aumento entre os 20% mais pobres foi de 22 pontos percentuais, chegando a 75% – nível próximo dos países com maior insegurança alimentar, como Zimbábue (80%) e Venezuela (72%). Já os 20% mais ricos, tiveram queda de 3 pontos percentuais, indo para 7%, valor um pouco acima da Suécia (5%), o país com menor insegurança alimentar.
A Organização das Nações Unidas (ONU) afirma que os fatores que provocam a fome e a pobreza são vários, perpassando o subdesenvolvimento econômico, como as doenças crônicas, a crise climática e a deterioração dos ecossistemas naturais pelo homem. Esses pontos também envolvem a transformação do alimento em mercadoria e a descaracterização da produção alimentícia patrocinada pelo Pacote Tecnológico de sementes geneticamente modificadas, agrotóxico e subsídios governamentais.
Para Solange Brito Santos, liderança da articulação Teia dos Povos, a insegurança alimentar deve ser analisada a partir da apropriação, da “dominação dos grandes”. “O sistema capitalista do agronegócio se apropriou desses alimentos, passou a empacotá-los”, explica, “o alimento industrializado é oferecido para a população menos favorecida, que eles dizem que são mais baratos”.
Com esse movimento de dominação, o agronegócio acaba padronizando a alimentação da sociedade brasileira. “Eles põem na nossa cabeça que existe só um tipo de feijão, só um tipo de hortaliça – e no campo, na terra, existe uma diversidade de alimentos que muitas vezes a gente não conhece”, explica. Segundo Solange, os povos originários comiam mais de 300 tipos de alimentos, entre variações de feijão, milho e arroz. Outras fontes reforçam que a transformação do alimento em mercadoria é um traço importante do capitalismo contemporâneo e uma das chaves para explicar o atual cenário de desigualdades econômicas e sociais, que impactam os sistemas alimentares globais.
Para agravar este cenário, também se encontra em curso a crise climática. Em 2019, Relatório da Comissão de Obesidade da revista The Lancet já demonstrava que, antes do cenário de pandemia, a relação dos seres humanos com o meio ambiente já era um desafio. Solange sintetiza um dos porquês: “você derruba a floresta e a tendência é, cada vez mais, ter o solo empobrecido e os rios secarem. A gente precisa de água, de terra fértil para produzir e se alimentar bem. Então, acabamos perdendo muitas plantas nesse sentido”. Além das variedades de alimentos, a liderança também aponta a perda do modo de produção e de vida.
Comer, ato político
A partir do momento que entendemos a alimentação como um ato não só individual, mas que sofre influências de diversos processos que extrapolam o indivíduo, pode-se também entender a alimentação como uma ação política. Em um cenário de produção de monoculturas, de padronização de dietas, desertos alimentares1área com acesso limitado a alimentos nutritivos e baratos., normalização de produtos ultraprocessados e controle corporativos da comercialização de alimentos e da massiva força midiática do “Agro é Pop”, o entendimento de que o quadro de fome atual é promovido por leis governamentais torna-se mais profundo e abrangente.
Em setembro de 2016, o Governo Temer já preparava o terreno. Na época, reuniram-se em Brasília representantes da sociedade civil organizada e governamental para a Oficina de Trabalho sobre Indicadores de Segurança Alimentar e Nutricional (SAN). O intuito foi discutir os indicadores que seriam utilizados no monitoramento de um novo plano 2016-2019, mas, apesar desta ser uma ferramenta essencial para avaliação de ações e programas públicos, o monitoramento, assim como outros recursos, sofreu corte de gastos – um total de 34%.
A medida de cortes e redução de gastos públicos é uma saída comum encontrada por governos em época de crise política e econômica, mas, hoje, fica claro que tais decisões impactam seriamente as políticas públicas estruturantes de proteção social. Um exemplo recente é que, durante o auge da pandemia, muitos alimentos não conseguiram chegar às cidades e restou para ONGs fazerem o trabalho de “ponte” entre campo e municípios. Para Solange, é essencial que se faça um trabalho minucioso no aspecto de rememorar e recuperar hábitos alimentares, uma questão desenvolvida de diversas formas na Teia dos Povos, como a Rede Sementes.
As associações participantes não só cultivam as sementes originárias e crioulas, mas também distribuem, por onde passam, para que se multipliquem. “Nós fizemos uma campanha em que nossos companheiros da Teia dos Povos de Pernambuco trouxeram mais de uma tonelada de sementes para distribuirmos aqui na Bahia, entre os territórios que sofreram com as enchentes”, comentou. O grupo também trabalha com a agrofloresta, levando para comunidades indígenas e quilombolas o sistema de recuperação da floresta. “A gente levanta a floresta, produz alimentos comestíveis e planta muita coisa diversificada”, explica.
…quando acaba o açaí, chega o açu, o abacate, a seriguela, o jambo… É assim, a cada momento. Termina uma fase de um alimento, chega outro. Isso é uma forma da gente manter a soberania alimentar, a terra e a floresta em equilíbrio.
Solange Brito Santos
O trabalho tem dado certo: Solange afirma que estão conseguindo recuperar solos degradados, nascentes e mata ciliar. Fundamentais para a segurança alimentar e saúde, ela ilustra como essa conciliação com o meio ambiente acontece: “quando acaba o açaí, chega o açu, o abacate, a seriguela, o jambo… É assim, a cada momento. Termina uma fase de um alimento, chega outro. Isso é uma forma da gente manter a soberania alimentar, a terra e a floresta em equilíbrio”.
As mulheres têm uma grande participação nestas ações. São elas, junto dos anciões, que guardam as sementes e mantêm não só a história viva, mas também asseguram a alimentação correta do grupo. A FAO (Organização das Nações Unidas para a Alimentação e a Agricultura é uma das agências das Nações Unidas) reconhece que as mulheres rurais representam 45% da força de trabalho agrícola em países em desenvolvimento e são responsáveis por mais da metade da produção de alimentos. Elas também têm participação expressiva em cooperativas e associações de agricultores.
Porém, a entidade destaca que elas vivem em situação de desigualdade social, política e econômica, tendo a titularidade de apenas 30% das terras, 10% dos créditos e 5% da assistência técnica. A superação da desigualdade entre homens e mulheres é um passo fundamental para reduzir a fome no Brasil e má nutrição no mundo, como afirma QU Dongyu, Diretor-Geral da entidade. Cumprir esse direito é a melhor forma de enfrentar o desafio da crise econômica, climática e violência contra as mulheres.
No Brasil, é essencial que as estratégias para garantir o acesso físico ou financeiro aos alimentos sejam criadas e as já existentes estimuladas, como no caso da renda mínima, Programa Nacional de Alimentação Escolar (PNAE), restaurante populares, cozinhas comunitárias, Programa de Aquisição de Alimentos (PAA) e distribuição de alimentos e cestas básicas.