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Colagem Caatinga e Amazônia

Queima Aqui, Seca Lá: Conectividade Ecológica da Amazônia à Caatinga

Publicada em:
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  • Juliana Aguilera
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Victória Lobo

11 min. tempo de leitura

A Amazônia e a Caatinga são uma só. Talvez, em primeiro momento, isso não faça sentido. Mas se colocada em um contexto capaz de considerar a conectividade ecológica, a relação é óbvia. Os limites postos entre os biomas brasileiros são propostos por convenção humana, mas na linguagem da Natureza, tudo é um só.

Os biomas se relacionam entre si de várias formas: troca entre biodiversidade, rios voadores e submersos e sementes que se espalham por dezenas de quilômetros. Assim sendo, o desmatamento na Amazônia gera um alerta para o Cerrado, a Caatinga e demais biomas. Um exemplo latente hoje é o descontrolado fogo no Pantanal e a seca histórica em regiões mais ao sul do país. Isso se chama conectividade ecológica.

O termo “conectividade ecológica” é definido como “uma propriedade das paisagens que influencia fortemente a abundância e a distribuição da biodiversidade e é chave para entender as interações entre organismos e os processos ecológicos resultantes de tais interações”. Ou seja, como um efeito dominó, a alteração de um elemento – vamos dizer, a retirada da vegetação nativa para a introdução de plantas exógenas, como a soja – pode provocar mudanças na dinâmica de outros agentes naturais. 

Um exemplo dessa dinâmica é a pluviosidade, cuja variação da circulação dessas massas de ar está sujeita à influência de fatores da superfície. Pensando na pluviosidade marcante da Amazônia, Mercedes Bustamante, bióloga, pesquisadora e professora da Universidade de Brasília (UnB), explica sua importância na conectividade entre os biomas: “essa precipitação vai atingir o centro do Brasil. Aqui no Cerrado vai encontrar condições de solo e vegetação que permitem o armazenamento de água, que vai abastecer os lençóis freáticos”. Os lençóis, por sua vez, formam regiões hidrográficas: bacias como a do São Francisco, importante rio que corta a região semiárida do país, nascem no Cerrado. 

Com o desmatamento e a degradação da Amazônia, esse fluxo de umidade é reduzido. Adicionando o desmatamento no próprio bioma Cerrado, essa capacidade de absorver a água diminui ainda mais e esse fluxo é enfraquecido. O desmatamento é um dos vetores principais para as mudanças climáticas regionais e global. 

O termo “conectividade ecológica” é definido como “uma propriedade das paisagens que influencia fortemente a abundância e a distribuição da biodiversidade e é chave para entender as interações entre organismos e os processos ecológicos resultantes de tais interações”.

A mudança da terra e floresta configura, segundo a série histórica brasileira, metade das emissões de Gases do Efeito Estufa (GEEs) emitidos pelo Brasil. O desmatamento, combinado com a crise climática, já é observado e relacionado com valores de aquecimentos extremos em áreas desmatadas de 2003 a 2018. Este é um dado destacado por um estudo recente feito por pesquisadores da Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz), Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (INPE) e Instituto de Estudos Avançados da Universidade de São Paulo (IEA/USP). 

Segundo os especialistas, o desmatamento em grande escala na floresta Amazônica associado à crise climática aumentará o risco de exposição ao calor extremo, nível considerado fisiologicamente intolerável ao corpo humano. Esse efeito deixará, até 2100, mais de 11 milhões de pessoas na região norte do Brasil expostas ao risco extremo de estresse térmico – esse valor corresponde a cerca da totalidade da população da cidade de São Paulo, a cidade mais populosa do país, ou a somatória de Rio de Janeiro, Brasília e Salvador, as 2ª, 3ª e 4ª cidades mais povoadas, respectivamente. 

Conectividade Ecológica da Amazônia ao Cerrado

Aliado ao desmatamento estão os incêndios, infelizmente, já conhecidos por nós por configurar com certa frequência na mídia nos últimos anos. Um estudo publicado na Scientifics Reports apontou que, entre 1999 e 2018, 16 milhões de focos de fogo foram detectados no Brasil – sendo a grande maioria no Cerrado (41,56%) e na Amazônia (38,34%). As emissões, claro, também se concentraram em ambos biomas, com a diferença que, desta vez, o volume maior é detectado na Amazônia (60,71%) e, depois, no Cerrado (32,04%). 

Em um governo anti ambiental, esses valores não significam muita coisa. Vale lembrar que o valor empenhado para fiscalização ambiental e prevenção e combate a incêndios florestais em 2018 foi de R$ 17 milhões, já em 2020, esse valor foi reduzido para R$ 12 milhões. Dados mais recentes do INPE apontam que, em setembro, foram contabilizados 19 mil focos de incêndio no Cerrado, um aumento de 32% se comparado com agosto. No acumulado anual, o aumento foi de 12% referente ao mesmo período do ano anterior. 

O desmatamento em grande escala na floresta Amazônica associado à crise climática aumentará o risco de exposição ao calor extremo, nível considerado fisiologicamente intolerável ao corpo humano. Esse efeito deixará, até 2100, mais de 11 milhões de pessoas na região norte do Brasil expostas ao risco extremo de estresse térmico.

As áreas de transição destes biomas, em especial, merecem atenção. A “fronteira” entre a Amazônia e o Cerrado se estende por aproximadamente 6.300 km e está dentro do conhecido Arco do Desmatamento. Segundo a tese “Redefinindo os limites Amazônia-Cerrado no Brasil: quanto e o que estamos perdendo?”, essa Zona de Tensão Ecológica (ZTE) não possui nenhuma lei específica de proteção à biodiversidade. O documento também destaca que as formações de transição “são altamente vulneráveis ao fogo, o que atinge florestas e savanas indiscriminadamente e com muita frequência”. 

Para compreender o quanto já influenciamos na paisagem natural, a pesquisa estima que as florestas de transição entre os biomas cobriam, originalmente, 362 mil km² do estado de Mato Grosso – 41% do total. Essa floresta, atualmente, foi reduzida em 62% por conta da pecuária, cultivo de grãos, extração de madeira, construção de hidrelétricas e produção de etanol de cana-de-açúcar. A fragmentação da vegetação leva a uma perda da conectividade ecológica entre os biomas.

Isso significa perda da biodiversidade por isolamento e perda das funções ecossistêmicas. “A conectividade ecológica importa para a manutenção da diversidade biológica e para a troca de fluxo gênico entre as espécies”, explica Júlia Shimbo, pesquisadora no Instituto de Pesquisa Ambiental da Amazônia (IPAM) e Coordenadora Científica do MapBiomas. Essa maior diversidade permite a “comunidades de plantas e animais a terem maior resistência, resiliência a qualquer impacto que possa ter ou mudança no ecossistema”. 

Andrea Garcia, pesquisadora do Instituto de Pesquisa Ambiental da Amazônia (IPAM), aponta que, apesar do bioma amazônico concentrar características mais alinhadas com uma floresta úmida e o Cerrado de um clima mais sazonal, suas vegetações e animais não são  necessariamente endêmicos de cada região. “Existem espécies que vão ocorrer em ambos locais, principalmente, nas regiões de transição. Quando a gente tem esses desmatamentos, eu deixo de ter esse lugares que conectam os diferentes grupos que habitam as diferentes regiões”, explica. 

Júlia também lembra que, atualmente, temos um novo “Arco do Desmatamento” na região amazônica. “No contexto da Amazônia, você tem, hoje, somente áreas de proteção que estão mantendo a floresta em pé, mas o quanto elas estão conectadas é uma outra questão”, afirma. Um artigo publicado na revista Landscape Ecol aponta que de 2000 a 2017, 78,2% da paisagem do Cerrado sofreu remoção de fragmentos de conectores ou corredores ecológicos. 

Existem espécies que vão ocorrer em ambos locais, principalmente, nas regiões de transição. Quando a gente tem esses desmatamentos, eu deixo de ter esse lugares que conectam os diferentes grupos que habitam as diferentes regiões.

Júlia Shimbo

A Coleção 6 do Mapbiomas, lançada em 10 de setembro, apresenta mais sobre a degradação do ambiente: entre 1985 a 2020, o cerrado brasileiro perdeu uma área coberta de vegetação nativa maior que o estado de São Paulo. Somente em Minas Gerais, esse espaço é do tamanho do estado de Alagoas. O Cerrado, segundo Júlia, é um bioma central para o tema da conectividade. “Ele está no centro do Brasil, faz conexão com todos os biomas exceto o Pampas”, explica, “o ecossistema tem uma importância na manutenção da biodiversidade e está bastante ameaçado”. 

Utilizando o Cerrado como peça-chave para compreensão, é possível entender os impactos da ação humana na conectividade ecológica de duas formas: o que é alterado dentro da região e o que deixa de fluir de uma região para a outra.

amazônia

Desmatamento diminui intensidade e frequência

das massas de umidade

caatinga

Com a baixa nas nascentes do Cerrado, mais o desmatamento em volta dos maiores rios da região (locais com maior população demográfica), os rios tendem a diminuir ou sofrerem assoreamento, causando impacto nas populações mais vulneráveis.

amazônia

Desmatamento diminui intensidade e frequência

das massas de umidade

caatinga

Com a baixa nas nascentes do Cerrado, mais o desmatamento em volta dos maiores rios da região (locais com maior população demográfica), os rios tendem a diminuir ou sofrerem assoreamento, causando impacto nas populações mais vulneráveis.

amazônia

Desmatamento diminui intensidade e frequência

das massas de umidade

caatinga

Com a baixa nas nascentes do Cerrado, mais o desmatamento em volta dos maiores rios da região (locais com maior população demográfica), os rios tendem a diminuir ou sofrerem assoreamento, causando impacto nas populações mais vulneráveis.

Mercedes reforça a importância de pensar no ciclo hidrológico para além da atmosfera, olhando também para as águas profundas. Se tratando do Cerrado, essa visão é essencial. “Quando a gente vê uma redução da água superficial, também é um indicativo de deflexão, de que você está aumentando a retirada, mas não está sendo capaz de aumentar a capacidade de recarga da água profunda”, afirma. O sistema entra, então, em déficit.

Do Cerrado à Caatinga 

Das 12 principais bacias brasileiras, oito nascem no Cerrado. Nascentes como do rio Araguaia, no Tocantins, que vai para a Amazônia; o Paraná, que desce para a Mata Atlântica; o Paraguai, que chega ao Pantanal e, claro, Parnaíba e o São Francisco, importantes rios para a região do semiárido. Esse último, aliás, tem abastecido sul e sudeste por conta da crise hídrica da região. Apesar disso, dados apontam que a bacia do rio São Francisco tem registrado a mais baixa precipitação dos últimos trinta anos, principalmente na divisa dos estados da Bahia, Pernambuco e Alagoas. 

Os fatores antrópicos nos biomas são semelhantes: o gado que compacta o solo – e compromete as nascentes pelo pisoteio, as queimadas, produção de carvão, soja, milho, algodão, celulose, cana-de-açúcar. A Caatinga, apesar de menos popular que o Cerrado e Amazônia, também possui história semelhante de invasão, apropriação e servidão ao capital. 

Um artigo publicado pelo Instituto Humanitas Unisinos (IHU) relembra que o gado chegou ao semiárido ainda na época colonial. O algodão foi um importante produto exportador para a Europa, durante a Revolução Industrial. Os vaqueiros trouxeram para a região culturas como milho e feijão – culturas que dependem da chuva e, logo, deixam a população preocupada em períodos de seca prolongada. Mas como relatado por Patricia Atikum, Co-coordenadora do Movimento Unido dos Povos e Organizações Indígenas da Bahia (MUPOIBA), mesmo em ano de chuva farta, a população se angustia, pois não sabe como será o ano seguinte. 

Das 12 principais bacias brasileiras, oito nascem no Cerrado. Nascentes como do rio Araguaia, no Tocantins, que vai para a Amazônia; o Paraná, que desce para a Mata Atlântica; o Paraguai, que chega ao Pantanal e, claro, Parnaíba e o São Francisco, importantes rios para a região do semiárido. 

A Caatinga cobre dez estados brasileiros, sendo a sua maioria na região nordeste. Seu clima é caracterizado como tropical semiárido e, apesar da vegetação parecer no imaginário coletivo como uma savana seca e pobre, o ecossistema possui uma variedade de relevos, solo e vegetação – são mais de 5 mil espécies de plantas, com, no mínimo 1.547 endêmicas. “A gente fala muito dessa diagonal das áreas abertas. ‘Abertas’ no sentido de vegetação de copa menos densa, que pega a Caatinga, passa pelo Cerrado e chega até a região do Chaco, no Paraguai”, explica Mercedes, “é uma linha diagonal que passa na América do Sul”. 

A pesquisadora aponta que as pessoas entendem a Caatinga como de “menor valor” por não ser uma floresta robusta, como a Amazônia, mas ambos ecossistemas são extremamente ricos em biodiversidade. Por conta do regime hídrico, a Caatinga possui uma série de características que permitem sua sobrevivência, como os solos propícios à retenção de águas subterrâneas, vindas do Cerrado. Além disso, é extremamente importante ressaltar que na região vivem aproximadamente 27 milhões de pessoas.

O aumento do desmatamento e desertificação aumentam também a vulnerabilidade social dessa população: em pouco mais de uma década, passou a existir áreas quase desérticas na região. Hoje, esse percentual é de 13%. O valor investido na região é insuficiente, como visto no Plano Plurianual (PPA) 2020-2023, estimado em R$ 183 milhões – valor 71% menor do que o previsto no orçamento de 2014. Segundo a Articulação do Semiárido Brasileiro (ASA), seria necessário que o semiárido recebesse ao menos R$ 1,25 bilhão para a construção de 350 mil cisternas.

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Uma consequência dessa realidade é o êxodo rural, a disputa dos recursos naturais entre empresas do agronegócio e população local e a perda de sementes crioulas. “A Caatinga está naquela área que todos os modelos do Painel Intergovernamental sobre Mudanças Climáticas (IPCC) colocam como altamente vulnerável pela desertificação”, explica Mercedes, “quando você vê essa perspectiva da mudança do clima, mais o uso inadequado do solo, é uma área que exige, realmente, uma atenção muito especial”. 

Júlia salienta a importância de enxergar a conectividade ecológica de diversas formas, como nos rios voadores, no pólen levado pelo vento e animais e que “conforme os biomas vão ficando mais fragmentados, você terá uma menor conectividade, cujas implicações virão”. A água na Caatinga tem importância tanto para a agricultura, quanto para as pessoas nas cidades, e para a fauna e flora que estão relacionados com a dinâmica fluvial. 

O Cerrado, com seus aquíferos e clima sazonal, também precisa ter sua vegetação nativa para manter o ciclo hidrológico de diversos sistemas. E ele também depende das chuvas provindas da Amazônia em pé. “Essa questão que você tem um bioma definido é mais uma convenção para facilitar a caracterização daquele lugar”, sintetiza Andrea, “mas, na verdade, você não tem uma separação entre biomas, não tem uma borda definida. É tudo contínuo”. Para a pesquisadora, focar menos nessas convenções de caracterização regional e mais no contínuo da biodiversidade ajudará as pessoas a enxergarem a importância do todo.

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